Às vezes é difícil identificar o início de uma história. Onde as coisas realmente começam? Não tenho certeza se esta é a melhor escolha, mas é o momento que eu escolhi.

A citação acima é parte da narração em off realizada pelo ator Vincent Magaigne, logo nos primeiros minutos de Três Amigas (Trois amies, 2024). Quem acompanha a filmografia de Emmanuel Mouret pode reconhecer nestas linhas um artifício que percorre seus principais trabalhos. Para além de histórias representadas em tela, no cinema de Mouret acompanhamos com frequência personagens contando histórias umas às outras, em um modelo narrativo que permite que os filmes se desdobrem em novas histórias dentro da história, alternando flashbacks, tramas paralelas, pontos de vista ou, simplesmente, contos independentes, sem relação direta com o que víamos até então - à exceção de saírem da boca de uma pessoa para o ouvido de outra.

Dois filmes notáveis no uso deste recurso são Beije-Me, Por favor! (Un baiser s’il vous plaît, 2007) e As coisas que dizemos, as coisas que fazemos (Les choses qu'on dit, les choses qu'on fait, 2020). No longa de 2007, um homem e uma mulher encontram-se por acaso nas ruas de uma cidade do interior da França. Ele oferece ajuda, ela aceita. Ambos sentem atração pelo outro. Ao final da interação, o homem revela que gostaria de beijá-la. Mas, para concretizar o beijo, precisarão superar uma questão moral: o compromisso que possuem com seus parceiros, e a possível dependência que criariam um do outro caso o beijo dado fosse inesquecível. A decisão sobre o beijo só será selada na cena final, depois de viajarmos pelas histórias que contarão um ao outro para decidirem se concedem ou negam o beijo.

Mouret volta a trabalhar com encontros que se transformam em relatos, e relatos que se transformam em novas ficções, no maravilhoso Les choses qu’on dit, les choses qu’on fait. O ponto de partida é a estadia de um jovem escritor na casa de uma editora, companheira de seu primo. Nos dias que passam juntos, compartilham longas conversas que deslizam naturalmente para a confissão de casos amorosos do passado. Cada episódio narrado se revela para o espectador como um conto dentro do filme, no qual passamos a acompanhar os personagens em experiências sentimentais anteriores. A alternância entre o tempo presente e o tempo passado não apenas estrutura o longa, mas também evidencia como as memórias e os sentimentos do narrador moldam as narrativas de Mouret.

É partindo dessa premissa que a escolha do instante para iniciar a história de Três Amigas, e sobretudo a escolha do personagem que terá a responsabilidade de narrar essa história, talvez seja o maior exercício de crueldade visto na obra do diretor até então. Afinal, no momento em que começa a narrar, Vitor (Vincent Macaigne) já está morto, e não poderá contar a história a mais ninguém além de nós, espectadores, sentados na poltrona do outro lado da tela. Sua presença em cena é a de um fantasma, que olha para a vida que abandonou no plano material, para as pessoas com quem compartilhava essa vida e para os passos que elas darão após a sua partida. Mouret não deixa o fantasma descansar, invocando sua presença para partilhar seus sentimentos conosco, e são esses sentimentos sobre a morte, o luto e o tempo que adicionam ao filme uma camada apenas ensaiada pelo diretor na sua obra pregressa.

Conhecido pelo tom agridoce e bem-humorado com que narra as peripécias amorosas de personagens neuróticos, Mouret adentra em Três Amigas o terreno do melodrama. Não é um movimento arbitrário, nem muito menos surpreendente. Filmes como Une autre vie, Mademoiselle de Joncquières e Chronique d'une liaison passagère já apresentavam um autor em processo de amadurecimento na elaboração do melodrama. Entretanto, é em Três Amigas que o tom melodramático é alcançado com maior densidade, com uma consistente sensibilidade na elaboração do tema central: o carrossel do amor e suas implicações morais. Tema imortalizado por grandes cineastas, como Jean Renoir, Max Ophüls, Ernst Lubitsch e Éric Rohmer, a quem Mouret presta tributo sem abrir mão do seu estilo.

Pelo olhar de Vitor, conhecemos as demais personagens da história, em especial o trio de amigas anunciado pelo título. Blanche, Pauline e Sophie são professoras, mulheres que dividem não apenas a profissão, mas também uma cumplicidade afetiva que ultrapassa o ambiente profissional. A morte de Vitor é um ponto de inflexão e desorganização em suas vidas: Blanche, viúva recente, oscila entre a fidelidade à memória do marido e a possibilidade de um novo afeto; Pauline, a mais racional do grupo, tenta interpretar os acontecimentos como exercícios morais, e aprende a amar o marido à medida que lida com a infidelidade, a sua e a dele; já Sophie, a mais livre e instintiva, deixa-se levar pelo ímpeto das paixões, ainda que isso a conduza a becos sem saída, como ter um caso com o marido de Pauline.

Unem-se ao grupo alguns pares de homens que viverão com elas histórias de amor, infidelidade, possíveis amores ou possíveis infidelidades que jamais se concretizam, num exercício de ficções que lembra os carrosséis amorosos de Max Ophüls, diretor que realizou algumas obras-primas sobre o tema no cinema francês (La Ronde, Le Plaisir, Madame De…, Lola Montès). Mouret filma esses encontros com um misto de delicadeza, rigor formal e ironia sutil. Assim como em Ophüls, o movimento é o motor da narrativa: personagens que giram de par em par, encontros que abrem outras histórias, possibilidades que se insinuam e desaparecem. No entanto, ao contrário do fatalismo trágico que marca a obra do mestre alemão, Mouret opta por uma ternura melancólica, um misto entre o melodrama e o humor agridoce que suaviza a dor sem jamais negá-la, resultando em momentos verdadeiramente delicados e belos.

Mouret filma as situações com a marca de sua mise-en-scène: planos abertos e longos; movimentos de câmera discretos que acompanham o ritmo da conversação; uma atenção obstinada às palavras e aos silêncios, aos sorrisos contidos, às pausas incômodas, às hesitações. A câmera em Três Amigas é como uma testemunha silenciosa que invade a cena, mas essa contenção não exclui a fruição do movimento; ao contrário, cada alternância entre as personagens abre uma possibilidade de explorar o espaço, sejam as locações internas ou externas, registradas aqui com uma beleza que capta a calma do mundo enquanto ele emoldura as tragédias da humanidade. Ao final, a moral da história não emerge de grandes revelações ou acontecimentos extraordinários, mas da singeleza cotidiana com que essas ações transcorrem na tela. Um pequeno filme que ganha a imensidão ao lidar com tanta ternura e emoção com as coisas da vida.