Eu quero apresentar a potência de uma cantora que admiro muito, mas pretendo relacionar três canções importantes dela com um período doloroso do meu país: a Ditadura Civil-Militar Brasileira. E entender os anos da ditadura no Brasil exige olhar para o século 20 como um todo, percebendo como cada fase da história preparou o terreno para o golpe de 1964.

A Primeira República (1889–1930) ficou conhecida como a “República do café-com-leite”, marcada pela alternância de poder entre São Paulo e Minas Gerais. Foi nesse período que se consolidou a separação entre Igreja e Estado, e o registro civil passou a ser obrigatório. O voto, no entanto, era restrito: apenas homens adultos alfabetizados podiam participar. Até 1894, o país ainda viveu sob forte tutela militar, com Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto no comando.

Após a Revolução de 1930, Getúlio Vargas assumiu o poder, dissolveu o Congresso e censurou a imprensa. Esse Governo Provisório (1930–1937) abriu caminho para o Estado Novo (1937–1945), regime autoritário inspirado em modelos europeus. Durante a Segunda Guerra Mundial, o aparato repressivo ganhou força, e a Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) tornou-se símbolo de perseguição, tortura e alinhamento com regimes totalitários.

Em 1945, o país entrou na chamada República Populista (1945–1964), período de grandes transformações. Foi quando Getúlio Vargas se suicidou, Juscelino Kubitschek construiu Brasília e a Bossa Nova começou a ganhar espaço cultural. Mas também foi um período de instabilidade: Jânio Quadros renunciou após sete meses de governo e seu vice, João Goulart (Jango), assumiu em meio a pressões e desconfianças. As Reformas de Base propostas por Jango, com medidas nacionalistas e de maior intervenção do Estado, despertaram a reação de setores conservadores e pavimentaram o caminho para o golpe.

Mas você sabe o que é uma ditadura?

Antes de avançar, vale esclarecer o conceito. Ditadura é uma forma de governo em que o poder se concentra nas mãos de uma pessoa ou grupo, sem divisão de poderes e com severas restrições às liberdades civis. Há diferentes tipos:

  • Ditadura simples: poder exercido pelo ditador com apoio do Exército, Judiciário ou burocracia.

  • Ditadura cesarista/bonapartista: sustentada pelo carisma pessoal do líder, como Vargas no Brasil ou Perón na Argentina.

  • Ditadura totalitária: quando um partido domina o Estado com base em propaganda e repressão, como no nazismo, fascismo ou stalinismo.

Independentemente da forma, ditadores concentram poder absoluto, cultivam a própria imagem e muitas vezes recorrem à violência e à censura para manter o controle.

O golpe de 1964 e os anos de chumbo

No dia 2 de abril de 1964, o Brasil amanheceu sob um novo regime. O golpe que derrubou João Goulart contou com apoio de militares, empresários, setores da Igreja, políticos conservadores e até do governo dos Estados Unidos. Em pouco tempo, quartéis foram ocupados, opositores presos e o Ato Institucional nº 1 (AI-1) foi decretado, dando ao presidente o poder de cassar mandatos e suspender direitos.

Se inicialmente havia quem defendesse uma volta rápida ao regime civil, essa possibilidade foi logo esmagada. Em 1967, Arthur da Costa e Silva, da ala mais dura, assumiu a presidência e, no ano seguinte, impôs o temido AI-5, que instituiu censura prévia, perseguição política e suspensão de garantias constitucionais.

Como observaram Marx e Engels, “as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes”. No Brasil, grandes empresários e latifundiários ajudaram a sustentar o regime militar. Ainda assim, a repressão só aumentou a mobilização social.

Resistência e mobilização social

Mesmo sob forte repressão, a sociedade se organizou. Em 1968, a Passeata dos Cem Mil reuniu estudantes, artistas, intelectuais e trabalhadores contra a ditadura. A juventude, em especial, tornou-se alvo de perseguições, já que representava o núcleo mais ativo da oposição.

Esse período também coincidiu com a segunda onda do feminismo (1960–1970). No Brasil, as mulheres incorporaram às suas pautas a luta contra a repressão e pela redemocratização. Além disso, denunciaram a dupla jornada, reivindicaram direitos reprodutivos, igualdade de gênero no trabalho e enfrentaram a violência contra a mulher. Surgia, nesse contexto, uma nova consciência: a de que as opressões femininas eram construídas socialmente — e, portanto, podiam (e deviam) ser transformadas.

Por que revisitar esse período?

A ditadura militar deixou marcas profundas na sociedade brasileira. Recordar esses anos não é apenas exercício de memória: é uma forma de compreender como regimes autoritários se constroem, como resistências se organizam e como pautas sociais se fortalecem mesmo em tempos de opressão. Lembrar é também um ato de resistência: nos ajuda a não repetir erros do passado e a valorizar a democracia que tantas vozes ousaram defender.

Um ícone

Rita Lee (1947-2023) sempre foi mais que uma roqueira irreverente: sua voz atravessou gerações e se tornou um símbolo de resistência feminina em tempos de censura e repressão. No auge da ditadura civil-militar brasileira (1964–1985), suas canções deram voz a sentimentos de inconformismo e ousadia, abrindo espaço para que mulheres se vissem em um cenário ainda dominado pelo patriarcado.

Trago aqui três canções icônicas de sua carreira: “Ovelha Negra” (1975), “Lança Perfume” (1980) e “Cor de Rosa Choque” (1982).

Ovelha Negra: identidade e rebeldia

Composta e interpretada por Rita Lee em 1975, é mais do que uma simples expressão musical: ela configura-se como uma narrativa de resistência, um hino de contestação contra as normas sociais e familiares que, durante décadas, sustentaram a lógica patriarcal e conservadora no Brasil. O período histórico em que a música foi lançada coincide com a vigência do Ato Institucional nº 5 (AI-5), fase de maior repressão da Ditadura Civil-Militar, quando a censura e a perseguição política cerceavam vozes de artistas e intelectuais.

Nesse contexto, a irreverência de Rita Lee ao compor e cantar a trajetória de uma jovem rebelde que se recusa a se submeter ao destino imposto pela família adquire um caráter subversivo.

Com leveza e ironia, Rita Lee questiona o pensamento tradicional, transformando o estigma de ser considerada a “ovelha negra” em símbolo de autonomia, resistência e afirmação de identidade. O termo “ovelha negra”, amplamente usado até hoje para se referir àquele que não se enquadra nos valores impostos pelo microssistema familiar, reforça a condição de marginalidade atribuída à personagem. Ainda que o debate sobre as possíveis conotações racistas da expressão deva ser considerado, o foco aqui recai sobre a subversão simbólica operada pela artista, que ressignifica o termo e o inscreve como emblema de liberdade individual.

Segundo o sociólogo José Américo Bezerra em Como analisar uma canção popular?, dois aspectos se destacam: figurativização e passionalização.

Na figurativização, a metáfora da “ovelha” ganha centralidade. Tradicionalmente, a ovelha é um animal que vive em rebanho, guiado por um pastor e pode ser associado tanto à figura de Deus quanto, no contexto histórico da canção, aos militares que exerciam o controle autoritário sobre a sociedade. Ao se identificar como “ovelha negra”, a personagem marca sua diferença em relação ao grupo homogêneo, que compartilha os mesmos valores e princípios. Essa distinção a coloca em posição de deslocamento e resistência, ainda que ao custo de abandonar o conforto da coletividade.

Já a passionalização manifesta-se nas repetições de expressões como “não”, que traduzem a recusa constante da personagem em aceitar as propostas familiares, e no uso de expressões de afeto e leveza, como “Baby, baby” e “oh, não”. Esses elementos inserem a canção no universo do pop-rock, mesclando contestação e ironia com uma linguagem que suaviza o trágico e reforça a irreverência característica de Rita Lee.

Lança Perfume: prazer e subversão

Se “Ovelha Negra” inscreve a recusa feminina ao destino patriarcal, “Lança Perfume” (1980) amplia o gesto de provocação ao explorar o corpo e o prazer como territórios de liberdade. A canção foi censurada no período de lançamento, em plena ditadura, justamente porque associava o “lança-perfume”, produto químico recreativo comum na festa popular do carnaval, ao desejo, à sensualidade e ao êxtase.

Ao entoar versos como “Me deixa sem vergonha quando beija minha boca e minha língua fica louca, fica louca toda vez”, Rita mistura a irreverência carnavalesca com uma lírica erótica que, ao invés de se esconder, celebra a sexualidade feminina de modo aberto e lúdico. O tom pop, aliado ao ritmo envolvente, contrasta com o peso político da censura, que via na canção um atentado à moral pública.

A análise sob a ótica de José Américo Bezerra também permite iluminar a figurativização presente no uso do “lança-perfume” como metáfora: o objeto passa de adereço carnavalesco a emblema da intoxicação prazerosa da paixão. Já a passionalização se dá pela musicalidade repetitiva e pelo convite à dança, transformando a experiência íntima em catarse coletiva.

Dessa forma, “Lança Perfume” demonstra como o corpo feminino, longe de ser passivo ou objeto, torna-se sujeito do desejo, rindo da censura e subvertendo normas ao transformar o erotismo em festa.

Cor de Rosa Choque: feminilidade em choque

Em 1982, já em outro momento político, Rita Lee lança “Cor de Rosa Choque”, canção que se torna um verdadeiro manifesto feminista. Aqui, a artista não se concentra mais na experiência individual da “ovelha negra” ou na celebração erótica de “Lança Perfume”, mas na força coletiva das mulheres que reivindicam espaço na sociedade.

O refrão marcante “Mulher é bicho esquisito / todo mês sangra” explicita de forma direta e poética uma condição biológica frequentemente silenciada. Ao assumir a menstruação como signo, Rita ressignifica um tabu e o inscreve como emblema de resistência. Não se trata apenas de evidenciar o corpo, mas de transformá-lo em arma política.

Nesse ponto, a figurativização se materializa na cor de rosa, culturalmente associada ao feminino, que se mistura ao “choque”, símbolo de impacto, ruptura e energia. Já a passionalização aparece no tom provocador, que alterna entre o deboche e o manifesto, convidando mulheres a se reconhecerem em sua diferença e, ao mesmo tempo, em sua potência.

Essa canção rompe com a ideia de fragilidade feminina, transformando-a em potência coletiva. O “bicho esquisito” torna-se símbolo daquilo que foge à norma, mas que resiste e insiste em existir. Rita Lee, nesse gesto, insere-se no movimento feminista em expansão no Brasil e dá voz a uma luta que ultrapassa a canção.

Música como resistência

Essas três canções, escritas em diferentes momentos da ditadura, mostram como a obra de Rita Lee foi capaz de desafiar normas sociais, políticas e de gênero. Sua poética não fazia protestos panfletários, mas revelava, em metáforas e ironias, uma contestação profunda.

A música, assim como a literatura e a arte em geral, funciona como memória coletiva: registrar, denunciar e provocar. Ao escutarmos Rita hoje, percebemos que suas letras continuam atuais pois ainda falam de corpos vigiados, de identidades que escapam às normas e da luta por liberdade. Escutem Rita, apreciem Rita, entendam a mensagem de Rita. Viva Rita!