Na Odisseia, apenas Argos, o velho e fiel cão de Ulisses, o reconhece na chegada… depois dele, uma longa e diversificada linhagem canina nos oferece a literatura (para ficarmos apenas por ela), ficcionais e reais: do mítico Cerberus (Cérbero), o guardião do Inferno, ao seu homólogo ficcional Fofo, de Harry Potter (Hagrid), também tricéfalo, protector da pedra filosofal, ou àquele em que Mefistófeles se metamorfoseia.
Passando pelos familiares e igualmente ficcionais Biruta (Lygia Fagundes Telles), Bruno Lichtenstein (Rubem Braga), Firififi (Dalton Trevisan), Garm (o cão falante de J. R. R. Tolkien no “Farmers Giles of Ham”), Japir (José de Alencar), Madrugada (Orígenes Lessa), Mila (Carlos Heitor Cony), Perigo (Domingos Pellegrini), Pingo-de-ouro (Guimarães Rosa), Plutão (Olavo Bilac), Quincas Borba (Machado de Assis), Samba (Maria José Dupré), Tentação (Clarice Lispector), Toto (de Dorothy, n’O Mágico de Oz), Tusca (Marina Colasanti), Uno (Walcir Carrasco), Veludo (Luiz Guimarães), Zig (Rubem Braga) e os da BD Milu (de Tintim), Idéiafix (de Obélix), até aos reais de Arthur Schopenhauer (Butz), Clarice Lispector (Ulisses), Dorothy Parker (Misty), John Steinbeck (Charley), Stephen King (Marlowe), Virginia Woolf (Pinka), até aos celebrizados pelo cinema.
No conjunto, são uma espécie heterogénea que vai emergindo de uma vasta, genológica e modalizadamente diversa literatura, da épica à BD1.
Vem isto a propósito de um texto revelador de talento de escrita de uma adolescente, que me emocionou e não resisto a reproduzir aqui. Um Réquiem por um Cão sonhado em época natalícia de prendas.
O texto intitula-se Zeus, fiel amigo e está, com outros, num volumezinho intitulado Focinhos Com História (2015) e organizado por professores de uma escola secundária membros da CADA-Clube dos Amigos dos Animais (que saúdo e felicito pela iniciativa). Reproduzo-o:
Estava sobre o túmulo. Estendido, imóvel, um vulto quase indistinto.
Aproximei-me. Era ele. Chamei. Nada, nenhuma reação. Afaguei-o. Continuava imóvel, aparentemente insensível. No focinho senti o que parecia ser um molhado de lágrimas. Estaria morto?
Na minha memória, o filme fez-me recuar no tempo. Zeus. Era uma bola de pelo branco, loiro e revolto quando o vi a primeira vez.O meu avô trazia-o numa cestinha, envolvido numa mantinha. Os olhinhos brilhavam e o focinho sorria, aberto para a lambidela pronta, animada, de bebé feliz. Agarrei nele, pu-lo ao colo, abracei-o, fiz-lhe festas. Oferta de anos [em tempo de Natal], foi a melhor da minha vida!
Crescemos juntos, entre correrias, abraços, festas e brincadeiras. Mal se apanhava solto, a correria era à desfilada... o problema era voltar a apanhá-lo, pois queria prolongar a brincadeira até à exaustão.
Aos poucos, o entusiasmo foi acalmando e, mais crescida, eu já me impacientava com as saídas e os passeios dessa rotina necessária, rotina que tinha fortalecido os laços entre nós.Também comecei a reprendê-lo, a zangar-me pelas asneiras e, mais tarde, pela insistência dele em estar sempre comigo, mesmo quando eu estava a estudar e a ver televisão. E ele começou, com uma expressão carente, a ir buscar uma peça da roupa (meias, etc.) para me sentir com ele, próxima, palpável, junto. O cheiro e o sabor eram as marcas dessa dona que se ausentava para outros afazeres, eu. Depois, sempre agarrado a essas preciosidades, vestígios do seu primeiro colo, foi-se ligando mais ao meu avô, companhia certa para os passeios necessários e desejados, afago carinhoso e presença calma, com voz bem timbrada, conversador.
Habituou-se a sentar-se ao lado da sua cadeira a ver aquele objeto de imagem em movimento e com som, a televisão: a mão do dono deslizava para a festa que os unia numa cumplicidade tranquila de final de dia, num conforto caloroso que passou a substituir a felicidade de outrora, com a vibração da infância partilhada. Eu acabei por ter de ir estudar fora, cada vez mais longínqua, presente apenas através de vestígios de cheiro e sabor de um farrapo que ele conservava, cioso.
Um dia, regressei devido à doença do meu avô. Ao lado da sua cama, atento, vigilante e inamovível, estava o Zeus. Soube que a aldeia se habituou a vê-los sempre juntos, a par, parando o passeio no largo, sentando-se ambos e descansando. Nunca o deixava nem se afastava, mesmo que o chamassem para lhe darem algum petisco.
Na despedida do avô, acompanhou-o até à última morada e pareceu afastar-se enquanto as pessoas se movimentavam. Todos se foram e eu também.
Em casa, procurei-o, chamei-o. Silêncio.
Regressei ao cemitério. Lá estava, estátua sombreada pelo fim de tarde.
Foi ataque do coração, disse o veterinário.
Na aldeia, consegui que me deixassem enterrá-lo ao lado do dono, prolongando a companhia da vida. Na lápide, mandei inscrever: "Zeus. Fiel Amigo."
Talvez este texto tenha sido um forte argumento para o acolhimento familiar do cão que ela conquistou mais tarde, e a que deu outro nome.
A aldeia não existiu, o Avô tinha partido havia muito “para preparar o caminho” à Companheira, “mais necessária naquela altura” à Filha e à Neta, e não tinha chegado a conhecer o cão, semelhante à descrição e à narrativa da sua evolução (e da relação com a “Menina”, primeiro colo dado e recebido), ainda hoje vivo, mas já com os sinais dessa melancolia com que busca “vestígios de cheiro e sabor de um farrapo que ele conservava, cioso”, e a que continua a recorrer sempre que se sente carente… No gesto da carícia deslizante, projectava-se o da Avó repetido até no último almoço das mulheres das 3 gerações, em jeito de aceno final e de legado…
A autora, Ana Sousa, é hoje, 18/12/2025, médica e, apesar de escrever de quando em vez, nunca o fez para publicar (como, aliás, também acontece com a fotografia). Parcialmente antecipatório, o conto é uma belíssima e emocionada metáfora da existência, com uma sabedoria da vida surpreendente numa adolescente que nunca tinha convivido com um cão e ainda hesitava na escolha do caminho…
Terá a autora consciência da dimensão reflexiva e estética do seu conto? E conseguirá ela conciliar a profissão que escolheu e a escrita que ocasionalmente lhe jorra?...
Perguntas a que os antigos oráculos responderiam com a ambiguidade e o enigmatismo que o desconhecimento do futuro exige. Grandes perguntas que nem Stephen Hawking se atreveria a colocar nem a responder com brevidade (Brief Answers to the Big Questions, 2018)…
Nota
1 Apenas alguns exemplos sem nenhuma aspiração a impossível exaustividade, lembro os cães de Agatha Christie (O Cão da Morte), Agustina Bessa-Luís (Um Cão que Sonha), Álamo Oliveira (Até Hoje. Memórias de Cão), Antero Barbosa (Cão Flash), Anton Tchékhov (A Senhora do Cãozinho), Arthur Conan Doyle (Sherlock Holmes - O Cão dos Baskervilles), Baptista-Bastos (Cão Velho Entre Flores), Bodo Schäfer (Um Cão Chamado Dinheiro), Carla Pais (Um Cão Deitado à Fossa), Consol Iranzo (O Cão Que Perdeu o Rebanho), Dylan Thomas (Retrato do Artista quando Jovem Cão), Eva Ibbotson (O cachorro e seu menino), Francisco José Pereira Alves (Alma de Cão), Franz Kafka (Investigações de um Cão), Gabriel García Márquez (Olhos de Cão Azul), Garth Stein (A arte de correr na chuva), Graciliano Ramos (Baleia de Vidas Secas), Jack London (O chamado selvagem e Caninos Brancos), Jerome K. Jerome (Três Homens num Barco (Já para não falar do cão)), João de Melo (O Cão dos Olhos Dourados), John Grogan (Marley & Eu), José Freyre (Chamam-me Cão!?), José Jorge Letria (Coração sem Abrigo), José Jorge Letria (Tenho em Casa um Cãozinho), Konrad Lorenz (E o Homem encontrou o Cão...), Luis Sepúlveda (História de um cão chamado Leal), M. Pires Cabral (Um Cão Chamado Pardal), Machado de Assis (Quincas Borba, que intitula a obra), Malcolm Gladwell (O Que o Cão Viu), Manuel Alegre (Cão como Nós), Maria Gabriela Llansol (Desenhos a Lápis com Fala - Amar um Cão), Mario Delgado Aparaín (Um Cão sem Nome), Mark Haddon (O Estranho Caso do Cão Morto), Nuno Markl (O Homem que Mordeu o Cão), O. Henry (A Teoria e o Cão. Os Caminhos que Tomamos), Philippe Claudel (O Arquipélago do Cão), Richard Zimler (O Cão que Comia a Chuva), Rudyard Kipling (O Cão do Mar e Outras Histórias de Cães), Seishu Hase (O Rapaz e o Cão), Simon Garfield (O Melhor Amigo do Cão - A história de um Laço Inquebrável), Takashi Murakami (O Cão que Guarda as Estrelas - Hoshi Mamoru Inu), Teresa J. Rhyne (Os cães nunca deixam de amar), Thomas Savage (O Poder do Cão), Virginia Woolf (Flush: Memórias de um cão), W. Bruce Cameron (Quatro vidas de um cachorro), Walcyr Carrasco (Anjo de quatro patas), etc.. Afinal, c. de 5 dezenas estão assinalados por Cláudia Cabaço no seu O Pequeno Livro dos Cães Famosos.


![Na minha memória, o filme fez-me recuar no tempo. Zeus. Era uma bola de pelo branco, loiro e revolto quando o vi a primeira vez.
O meu avô trazia-o numa cestinha, envolvido numa mantinha. Os olhinhos brilhavam e o focinho sorria, aberto para a lambidela pronta, animada, de bebé feliz. Agarrei nele, pu-lo ao colo, abracei-o, fiz-lhe festas. Oferta de anos [em tempo de Natal], foi a melhor da minha vida!](http://media.meer.com/attachments/902eeee7f82572584aad049b2ee450c1c5f093f6/store/fill/410/308/42fb93e1f81e15eaed03711cff94566939ed110396dfd2d8b734522649d8/Na-minha-memoria-o-filme-fez-me-recuar-no-tempo-Zeus-Era-uma-bola-de-pelo-branco-loiro-e-revolto.jpg)












