Os primeiros raios de Sol despertaram o jovem Louis Rélleivaux como a inspiração que acerta em cheio o coração do artista. Antes mesmo de se preparar para o trabalho de meio período num bistrot próximo a seu apartamento, decidiu que precisava traçar algumas linhas do futuro romance.
Naquela noite sonhara com um templo imenso erguido sobre colunas de luz. Sob a abóbada irregular, translúcida mas de alguma forma palpável, vira jovens com roupas largas e joias de ouro interagindo em conjunto, como em algum esporte. Porém, não havia competição: havia mais uma comunhão, tendo por objetivo o aprendizado e o autodesenvolvimento de cada indivíduo e do grupo. Embora não entendesse o idioma que falavam, em determinado momento ouviu claramente “Neb-Ra”. Onde já tinha visto aquela palavra?…
Depois da higiene matinal e de um forte expresso com bolachas e geleia de mirtilo (não costumava comer muito pela manhã, mesmo sabendo que não era o ideal), pegou Pláton no colo, ligou o PC e, no programa de notas, escreveu: “pesquisar por Neb-Ra”; em seguida, “buscar algum templo em que se aproveite da luz solar”. Abriu o editor de texto e deixou que a inspiração utilizasse seus dedos para alguns parágrafos, por enquanto sem muito critério. Gostou do que leu e, após algumas correções, salvou o arquivo – já era hora de se arrumar. Um rápido banho e estaria pronto para as obrigações do dia.
As poucas horas de serviço arrastavam-se naquele dia. O rapaz se esforçava para se concentrar, mas, apesar de não ter cometido nenhuma imprudência, era nítida sua ausência: a mente flutuava entre os primeiros parágrafos escritos e o templo de luz, que não saía de seus pensamentos.
—O que houve, rapaz? – era Jacques, colega do bistrot – Meio distante hoje?
—Desculpe… Pensando em algumas coisas.
—Se for um problema em que eu possa ajudar…
—Oh, não: são bons pensamentos. Logo eu coloco no papel tudo isso e paro de pensar tanto.
—Certo! – Jacques riu – Daqui a pouco acabará o expediente e você estará livre para criar. – piscou, sabendo do ofício de escritor do colega, embora pensasse que para ele seria mais um hobby que uma profissão.
Louis apenas sorriu, um pouco desconcertado.
Mais meia hora e estava liberado. Tirou o avental, despediu-se de todos e correu para casa, onde só comeria alguma coisa antes da entrevista de que participaria, confirmada por e-mail no dia anterior.
Faltavam cinco minutos para 14h00 quando o Asbenark hatch estacionava numa rua tranquila de Sevrantes, um bairro ligeiramente afastado do Centro de Dunquerqueville. Nas calçadas, muitas árvores garantiam sombra durante quase todo o dia, tornando a temperatura amena mesmo nas épocas mais quentes. Naquela tarde de inverno, porém, aumentavam a sensação de frio.
O prédio de 1942 era bastante imponente. Totalmente no estilo art déco, que no Reino de Lanes perduraria até os anos 1960, passara por uma intervenção de manutenção pouco antes da pandemia e mantinha-se em excelente estado. Era o mais antigo da rua e sempre chamava a atenção dos transeuntes.
Louis tocou a campainha à frente da placa onde se lia “M. de Joutronnard”. Em poucos instantes, uma voz firme, metalizada pelo interfone, respondeu:
—Bonjour. Pois não?
—Aqui é Louis Rélleivaux, M. de Joutronnard. Marquei uma entrevista com o senhor por e-mail.
—Ah, sim! Vou abrir o portão automático… Abriu?
—Sim, merci. Estou subindo. – entrou e foi até o quinto andar pelo moderno elevador, construído de modo a não contrastar com o interior do edifício.
Assim que desceu, viu que M. de Joutronnard já o aguardava na porta de seu apartamento. De estatura mediana e ligeiramente corpulento, estava elegantemente vestido para uma entrevista tão casual, com direito a um lenço onde talvez estivesse uma gravata. Tão logo viu o rapaz, sorriu e ofereceu um aperto de mão.
Gérard de Joutronnard era um famoso linguista, ensaísta e tradutor dunquerquevilliano, chegando inclusive a dirigir algumas peças de teatro. Morava desde a juventude naquele apartamento, cujo interior, ricamente decorado sem ser ostentativo, mantinha muitas características alinhadas ao estilo art déco da construção, embora com tecnologia atual.
—Entre, por favor. – disse Gérard, com um gesto dramático – O escritório fica à esquerda. – conduziu o rapaz até lá – Sente-se, por favor. – depois que Louis se acomodou, tomou a poltrona principal – Li seu e-mail e fiquei fascinado pela ideia, ainda mais depois que me contou que conversou com o Prof. Al-Najib. Conte-me mais a respeito, por favor.
Louis repetiu, em linhas gerais, o conteúdo da conversa com o egiptólogo, além da própria entrevista com Eugène Hyndormais – pedindo discrição, a qual foi de pronto atendida. O linguista ouvia a tudo com interesse sincero, vez ou outra interagindo com uma e outra interjeição. Ao final, disse:
—M. Rélleivaux, é um trabalho riquíssimo o que o senhor pretende, sem dúvida. Meus parabéns. – o rapaz agradeceu com um aceno de cabeça – E realmente acredito que os idiomas seriam muito diferentes, a partir de um mundo ocidental egípcio e não greco-romano. Separei um pequeno livro que escrevi há uns bons anos sobre a língua copta: talvez lhe seja útil – é seu. – entregou o exemplar ao rapaz, que agradeceu novamente.
Conversaram ainda por bastante tempo, e não apenas sobre idiomas, mas inclusive sobre como seriam as obras literárias nesse mundo alternativo: os poemas, os romances, as peças etc. Depois da literatura, passaram para a música e o diretor perguntou:
—O senhor gosta de ópera, M. Rélleivaux?
—Sem dúvida! Como todo bom lanesano. – riram.
—Pois mesmo a nossa adorada ópera com certeza seria diferente nesse mundo egípcio… Já pensou nessa possibilidade?
—Sim, cheguei a pensar. Mas ainda não sei se apenas farei pesquisas ou se tentarei uma entrevista com algum músico a respeito.
—Acho que é seu dia de sorte: minha amiga Rosalie d’Astrournal está na cidade. Posso perguntar se ela lhe concederia uma entrevista. O que acha?
Louis sentiu-se lisonjeado com a honra, já que se tratava de uma das principais compositoras do reino – dentre outras obras famosas, era dela a Messe du Couronnement, composta em 1997 para a coroação da Rainha Sophia VII.
—Eu ficaria muitíssimo feliz, M. de Joutronnard!
—Ótimo! Vou mandar u’a mensagem a ela agora mesmo. Um momento, por favor. – o ensaísta pegou seu celular e digitou por algum tempo. Logo recebeu uma notificação – Maravilha: ela ficará na cidade por mais alguns dias e aceita recebê-lo para uma entrevista, se o senhor não tiver mais nenhum compromisso em breve. Que tal depois de amanhã, à tarde?
Contentíssimo com uma daquelas coincidências que acontecem mais na ficção do que na chamada realidade, Louis aceitou no mesmo instante. Gérard mandou nova mensagem à compositora e tudo ficou arranjado. Conversariam mais um pouco e o linguista daria uma verdadeira aula sobre o idioma copta ao rapaz.
Ao final da entrevista, com três livros nos braços, Louis agradeceu ao ensaísta mais uma vez. Despediram-se e, ao descer, depois de entrar no carro, o jovem ainda ficou algum tempo sentado diante do volante, tentando assimilar tudo aquilo – e o que estava por vir. Satisfeito pelo rumo que seu projeto estava tomando, sorriu. Ligou o Asbenark e, uma vez pareado o Spotify do celular com a multimídia, partiu para casa.