Eu usava meus óculos de sol novíssimos, que comprei em uma promoção de Black Friday especialmente para esta viagem, o sol estava forte, bonito e estampado no meio do céu, embora a tarde estivesse fria, obrigando-me a ajustar o cachecol ao redor do pescoço a cada rajada de vento.

Admirava os canais, apressava os meus passos em cada esquina, desviando de bicicletas que surgiam como formigas fugindo de um formigueiro atacado por um galho de um menino travesso. Limpava a boca do chocolate derretido passando a língua ao redor dos meus lábios e tentava enquadrar o horizonte na tela do celular. Eu estava ali. Em Amsterdã.

Eram quatro da tarde e eu já estava aguardando a hora de embarcar no barco. Comprei uma dessas tours para ver os canais de uma perspectiva diferente. Um passeio de barco open-bar parecia uma boa proposta. Pisca-piscas decoravam o ambiente, cobertas estavam estendidas sobre os bancos, e uma pequena mesa exibia chocolates, vinhos e Heineken.

Eu fui a última a embarcar. Por estar sozinha, deixei os grupos se acomodarem próximos uns dos outros, garantindo o prazer de todos. Inclusive o meu, que queria apenas observar e, se possível, aprender uma nova curiosidade sobre aquelas águas escuras, paredes estreitas e os segredos disfarçados nas grandes janelas.

“Há mais bicicletas do que pessoas” - ela me disse em um inglês pausado.

Dei mais um gole na minha cerveja, que abri sem perceber, não tão gelada quanto meus lábios roxeados pelo frio. Assenti com a cabeça, fingindo surpresa. Claro que já havia lido tudo sobre a cidade, devorado artigos sobre a cultura, os melhores restaurantes e as 10 coisas que você não pode deixar de fazer. Mas nada como ouvir de um local, pensei.

Estava sentada na ponta inicial do barco, se eu esticasse o braço um pouco, conseguiria tocar o volante. “Volante”? Fiquei alguns segundos encarando as pequenas mãos daquela menina rodando para a esquerda aquele troço que não sei o nome.

Esperava encontrar um homem velho com um boné e óculos de grau, mas é essa menina de 25 anos? Chutei. Julguei o meu próprio pensamento machista enquanto pegava um daqueles chocolates do pote. Imagino que muitas mãos tenham encostado nesse chocolate, empurrando-o de canto em busca de um pedaço maior.

O barco, lento como o meu olhar, começou a atravessar as pequenas ondinhas formadas pelo vento e pelo balançar do barquinho. Me sentei apressada e olhei para fora, me vendo deslizar pelas águas escuras.

A pequena capitã se apresentou em uma breve e sutil apresentação carismática, como uma boa guia turística. E apesar de ter certeza de que ela repetisse esse mesmo discurso diariamente, me pareceu tão sincero. Lia, era o seu nome.

Percebi que a estava encarando quando ela me olhou e sorriu, como se dissesse “obrigada pela atenção”. Ela guiava o barco como se fosse uma molécula de água, se sentia parte daquilo, ia apontando para alguns pontos turísticos, sem pressa, como se o tempo fosse algo a ser saboreado ali, em cada curva dos canais e no silêncio entre cada palavras.

Ela disse algo intraduzível na rádio. Achei a voz dela ainda mais bonita naquele idioma. Firme e aveludada.

Os outros turistas se agrupavam para tirar fotos e conversar entre si. Por alguns minutos, virei a fotógrafa oficial, tirando fotos para todos. Depois, tentei escapar da função, fingindo interesse pelas janelas abertas para a água — tão próximas que, se eu quisesse, poderia tocá-la com as mãos.

Primeira vez em Amsterdam? — Lia perguntou, inclinando-se casualmente.

Primeira vez. — respondi.

Seja bem-vinda! — ela sorriu.

Atenção pessoal! — a voz de Lia ganhou certa potência.

Os grupos sentados mais atrás do barco riam, enchiam as taças e abriam latas de cerveja a cada minuto. Pareciam estar se divertindo. Mas agora, pararam prontamente para escutar o que Lia tinha a dizer. Vamos passar debaixo da ponte: Magere Brug. E dizem que se você beijar a pessoa amada ao passar, ficarão juntos para sempre. – Continuou.

A ponte está iluminada combinado com todo o resto. Olhando assim, não consegui ver nada de especial em sua estrutura. Uma lenda inventada para atrair turistas ao passeio de barco, pensei. Ao olhar para trás, vi casais se beijando enquanto riam. De alguma forma, essa cena me deixou emotiva e feliz, apesar de ter terminado com o meu namorado há duas semanas.

Você está sozinha? — ela perguntou.

A voz melodiosa novamente apareceu, enquanto as pupilas grandes cortavam o ar em minha direção. Enrolando meu cachecol ao lado, feito uma cascavel pronta para o ataque, senti orgulho em responder que sim, estava sozinha, viajando pela Europa depois de três anos de um relacionamento de merda, de um trabalho de merda, de uma vida de merda.

Ela sorriu. De novo. Mas um sorriso provocativo que me deixou com o coração acelerado. Abri outra cerveja e dei um gole desesperado.

À medida que o passeio terminava, o céu já estava tingido de tons dourados e rosados. Quando a embarcação parou, todos os turistas começaram a se levantar, se despedindo uns dos outros, bebendo mais uma taça de vinho rapidamente. Eu permaneci sentada, com as pernas no ar para evitar algum torpeço embriagado e esperei, pacientemente, o tumulto diminuir.

Quando me levantei, comecei a caminhar em direção à saída, Lia me acompanhava com seus olhos e eu acompanhava os olhos dela.

Ao pisar para fora do barco, Lia me chamou e levantou o cachecol esquecido no banco. Voltei para pegá-lo. Ela ainda o segurava, como se estivéssemos em uma discreta guerra de cordas, mas sem o uso da força. Ficamos assim por alguns instantes, paradas, enquanto eu percebia que ela buscava as palavras certas para dizer.

Quer conhecer melhor a cidade? – ela pergunta.

Sem palavras, sentei-me novamente. O motor roncou suave. O barco girou lentamente, tomando outro rumo. A cidade parecia diferente agora — mais íntima, quase secreta. Como se estivéssemos compartilhando algo que não podia ser explicado, mas que era visível entre as sombras das pontes e o brilho suave da água.

O barco deslizou pelos canais com uma tranquilidade silenciosa, e cada minuto parecia se estender no tempo, como se o ritmo da cidade tivesse se ajustado ao meu próprio. O céu agora estava quase completamente tingido de noite, e a luz refletida fazia as águas parecerem um espelho onde se refletiam não só os prédios, mas também os nossos pensamentos.

Havia música em sintonia com aquele momento palpável. O vento que cortava o ar parecia trazer algo a mais, uma promessa de descoberta, de algo mais profundo, que não estava ali apenas para ser visto, mas para ser vivido.

Uma casa flutuante apareceu à vista, como uma joia esquecida no meio do canal. A antiga construção estava rodeada de vegetação e parecia quase mágica, como se tivesse sido preservada no tempo. A água, calada e profunda, refletia o cenário com uma serenidade que fazia o lugar parecer fora do alcance da realidade cotidiana.

É aqui – ela disse enquanto desacelerava o barco.

Olhei para Lia e vi algo em seus olhos — uma intensidade, uma promessa que não precisava ser dita. Ela segurou minha mão. Pisei na plataforma da casa. A brisa gelada acariciava minha pele contrasteando com o calor que se formava entre nós, como se a cidade em si estivesse nos envolvendo, empurrando-nos para um momento que não poderia ser evitado. Ela me olhou, mais uma vez, como se estivesse testando meus limites, e então, com um movimento suave, estendeu a mão para tocar meu rosto.

Eu ainda não sei o seu nome — ela disse.

O toque de seus dedos foi como uma faísca, seus olhos não se desviavam dos meus, e eu não sabia mais se queria que ela fosse mais lenta ou se sentia que precisava disso, agora. A mão dela desceu para o meu pescoço, tocando a pele com uma delicadeza que me fez fechar os olhos por um momento. Quando os abri novamente, vi os lábios dela muito perto dos meus, como se o ar entre nós precisasse ser compartilhado.

Um beijo, quente, profundo, molhado. Ela me explorava com suas mãos, descobrindo cada pedaço de mim. Cada movimento dela parecia sincronizado com os batimentos do meu coração.

As luzes da cidade piscavam lá fora, como cúmplices silenciosas de algo que eu não estava disposta a deixar escapar.

Naquela noite, entre as sombras dos canais e o brilho dos olhares trocados, perdi meu cachecol — e, junto com ele, um pouco do medo que ainda me prendia. Amsterdã, generosa e silenciosa, me ofereceu algo que eu nem sabia que procurava: a chance de me perder, só para enfim me encontrar.