Há poucos dias fui acompanhar minha mulher numa consulta ao oftalmologista. Era a primeira vez naquele médico, que nos atendeu de forma amistosa e gentil, coisa excepcional, e no horário marcado, coisa mais excepcional ainda.
Lá pelo final da consulta, conversando sobre o uso de lentes de contato, o médico enrolou uma folha de papel formando um canudo e deu à minha mulher, dizendo:
—Por favor, olhe para mim através deste canudo.
Ela pegou com as duas mãos para não desenrolar e colocou no olho direito.
—Era isso que eu queria saber. Seu olho predominante é o direito! — concluiu o médico.
Olho predominante? Na hora fiz o teste: o meu é o esquerdo! Achei bom para a harmonia do casal, pois assim quando estamos um em frente ao outro, os olhos predominantes ficam alinhados…
Saí da consulta impressionado com o fato de haver esta característica em nossos olhos, que eu julgava em igualdade de condições. Lembrei que a predominância também está presente em nossos braços. E em nossas pernas. Eu, por exemplo, sou uma anomalia: destro nos braços e canhoto nas pernas. Será que também há ouvido predominante? É provável.
Mas fiquei intrigado com o fato de existir a predominância entre dois órgãos idênticos, num mesmo corpo. Por que isso? Será que, até neste caso, a igualdade é uma utopia?
Talvez seja uma lei do universo, segundo a qual, havendo dois, é preciso que haja o predomínio de um para poder organizar a ação. Caso contrário, poderia ser como dois senhores em igualdade de condições, de mesma idade e excessivamente gentis, um dando a passagem ao outro e permanecendo ambos parados, num eterno impasse. Ou o lance de futebol entre dois jogadores do mesmo time, um cedendo a vez ao outro para neutralizar um ataque e ambos perdendo a jogada para o adversário: o famoso deixa que eu deixo!
Nem quero me arriscar a extrapolar estas considerações sobre a supremacia de um quando existem dois, para o complexo contexto do casamento. É um campo perigoso demais para este humilde cronista. Prefiro deixar ao prezado leitor, principalmente aos casados, a total liberdade de refletir se isto faz sentido, se é sempre aplicável ou até mesmo se a predominância é situacional e oscila entre os dois conforme as circunstâncias.
Mas não posso recusar o que me vem à memória. Esta consulta médica e as ponderações decorrentes me fizeram recordar um casal, de convivência muito estreita conosco, onde a predominância de um sobre o outro era a mais nítida que já conheci. Vamos ao caso.
Ela se comportava como uma Rainha, mas não da Inglaterra e sim daquelas que exercem efetivamente a soberania. Reinava autônoma em casa: determinava tarefas, tomava decisões, dava ordens a ele e literalmente falava pelo casal. Em quantidade e qualidade.
Se eram uma só carne, a carne era a dela.
O marido parecia sempre apaixonado, disposto a fazer-lhe todas as vontades e não reagia à Imperadora, mesmo em momentos críticos ou quando discordava totalmente de certos pontos de vista. Na realidade, quando havia alguma discordância, ele preferia o silêncio e mantinha a divergência oclusa: preferia engolir e adotar o ponto de vista imperial, quase sempre manifestado por Sua Majestade em voz bem alta e clara, na presença de quem quer que fosse.
De vez em quando, a Alteza dava uns tapas nos ombros do súdito, como se fosse uma brincadeira, mas com uma vontade verdadeira. Ele, apesar de muito mais alto e forte, logo no primeiro toque, encolhia-se como uma planta dormideira, juntando os braços, abaixando a cabeça e curvando as costas.
A reação dele me impressionava. Quase sempre contra-atacava com um sorriso e palavras amorosas, chamando-a por apelidos diminutivos. Isto arrefecia o ímpeto dela e algumas vezes fazia tudo terminar em gestos de carinho e risos.
Na verdade, nunca percebi nele ares de humilhação, mas sim de adoração.
Com o tempo passei a achar que ele havia encontrado o jeito certo de lidar com a mulher que amava: fazia-lhe as vontades, concordava com tudo e deixava que ela exercesse a predominância de modo pleno e absoluto. O ajuste perfeito proporcionado pelo amor.
Assim foi quase pela vida toda. Veio um casal de filhos, mas o império não foi abalado. A Soberana tratava muito bem as crianças, cercando-as de cuidados e atenção. Mas, com o marido, não abria mão de sua conduta monárquica.
Aí vem o desfecho.
As crianças cresceram, os filhos casaram e o casal, àquela altura com mais de 30 anos de casados, continuava a conviver harmonicamente aos olhos de todos. Neste ponto, permita-me o leitor uma digressão, até me ocorreu se eu olhava para ela com o olho predominante e para ele com o outro. Sei lá…
Num domingo, como de hábito, ele saiu para comprar o pão e ela ficou dormindo, aguardando o momento certo do café da manhã. O tempo passou, ela acordou e ele ainda não havia chegado. Estranhou. Levantou-se e foi até à sala.
A mesa do café estava posta e na cesta de pão vazia havia um bilhete dobrado. Abriu o papel e estava escrito, com a letra dele, uma única e expressiva frase:
Cansei e fui embora.
A predominância tem um preço.
Acho que o meu olho esquerdo tem mais chance de ter problemas.















