Orfeu é órfão. Vive num ninho, sozinho, no topo de um embondeiro ancestral. Da copa da árvore o mundo, como a mãe costumava dizer – daqui, na protecção do embondeiro, estamos a salvo.

Orfeu nasceu, único de cinco a vencer a primeira batalha de todas, num inverno austero. A mãe fraca lutava contra o mundo e contra tudo para se alimentar e proteger as suas crias, mas estava fraca, fraca de voar, chorava: as lágrimas de quem não tinha forças e quem se aproximava da morte de dia para dia: receava o mesmo destino para os seus filhos. Orfeu, o primeiro, tinha olhos com o fogo de viver. E do primeiro olhar viu a mãe sorrir. Um sorriso de choro, misturado com sofrimento.

Orfeu, um dia, acordou: a mãe estava imóvel, desalmada, moribunda; piava rouca, baixinho, usando todas as suas forças para o alertar sobre a vida. Orfeu tentava levantá-la sem sucesso; a mãe encontrava-se debilitada, enlanguescida, vencida. As suas lágrimas matavam a sede ao pequeno Orfeu que insistia em levantar a cabeça da mãe que caia pesada. Olhavam-se com a ternura de poder ser o último olhar.

Orfeu revirava-se no ninho, procurava aquecer a mãe. Ele, de olhos virgens, descalços, via os seus irmãos por nascer. Batia-lhes com o bico, mas sem resposta. Não resistiram à arrogância de um inverno insistente. Eram ovos ocos. Ausentes de vida; Orfeu sabia, mas não queria a mãe derrotada.

Ajudava a mãe a chocar os ovos, os dois mantinham-se aquecendo uns aos outros. A mãe ainda voou, mas rapidamente voltou sem nada, as asas molhadas da chuva pareciam pesar como um tronco de embondeiro. As buscas por alimento começaram a escassear.

Ela picou os ovos que se partiram, frágeis, sem vida: nada por dentro. Orfeu sentiu o olhar da mãe, reconfortou-a nas suas pequenas penas. Orfeu era pequeno, mas maduro o suficiente para saborear a despedida nas lágrimas da mãe que mesmo assim sorria-lhe. Despediram-se, sem saber se voltariam a ver-se.

Aninharam-se, Orfeu por baixo da asa da mãe, adormeceu.

A lágrima foi o último sustento.

No dia seguinte, um pequeno broto da árvore abrigava-o da intempérie. Era um ramo criança, assim como Orfeu. Estava fraco, pouca força tinha. A vida tão curta pesava, o inverno não ajudava. Só o embondeiro milenar resistia erecto protegendo-o maternalmente. A mãe já não estava.

Orfeu, uma cria, pequeno, frágil, lutava contra as necessidades básicas da vida; a ausência da mãe, a fome, a sede. O mundo parecia desabar em desgraça naquela tempestade. Os ventos trocados e chuva torrencial ameaçavam a sua subsistência. Das folhas que resistiam ao Inverno, a chuva caía pingando sobre o pequeno passarinho que se saciava da sede.

O vento soprou forte partindo um dos ramos mais secos. Ao quebrar-se um ninho de formigas fugia aninhando-se perto dele. Assim, Orfeu, resistiu alimentando-se das formigas que se protegiam também do temporal. O ninho, feito com mestria, resistiu ao temporal, o embondeiro criava uma cova funda protegendo-o.

As noites, eram negras, longas, tanto barulhentas como silenciosas, tudo se ouvia: ramos estalarem, caindo; animais próximos, no chão, na própria árvore. Orfeu sentia medo, não gostava daquela imensidão em silêncio. Procurava protecção do pequeno ramo que crescia como um irmão mais velho.

Com as formigas por perto, outros bichos apareceram atraídos pelo petisco: lagartas, outros tipos de formigas, voadores, rastejadores. Cedo, Orfeu aprendeu a auto-sustentar-se, mas crescia órfão, sem ensinamentos; órfão de ser pássaro.

Pulava de um ramo para outro e brincava com as pequenas folhas da árvore que iam crescendo. Cresciam juntos. Aos poucos se tornava árvore até que as lembranças da mãe lhe surgiam na memória. A mãe era grande, colorida, não só saltava como voava. Como ela voava elegante pousando na calma de um pequeno suspiro. Orfeu, não tinha ninguém para o ensinar a ser pássaro.

O inverno passou, a primavera trouxe vida; Orfeu, também ele, era primavera. Das outras árvores cresciam flores, das flores frutos de variadíssimas formas e feitios. Do embondeiro começaram a crescer ramos finos, folhas e pouco tempo depois uns frutos grandes esverdeados. Ao amadurecerem tornavam-se em nozes acastanhadas e caíam no chão partindo-se; de dentro uma fruta agridoce, seca, branca como farinha. Chama-se de malambe: um fruto que se desfaz na boca – assim Orfeu assistia os animais a comerem e a deliciarem-se. Queria experimentar, mas tinha medo de descer da árvore e de se tornar, também ele, fruta para esses animais terrestres.

O ramo que lhe dava abrigo era já grande e tinha dois malambes pendurados. Orfeu sabia que estavam prestes a cair e, devagarinho, aventurou-se para tentar chegar ao fruto.

O ramo abanava com o seu peso, mas ele insistia, pata a pata, sustendo a respiração, aproximava-se. Estava perto, muito perto, faltavam meros centímetros. Num salto ficava perto dos dois malambes. O próprio ramo sustentava-o com esforço.

Concentrou-se; num salto segurou um dos frutos com as suas patas finas.

Com duas bicadas conseguiu fazer um furo na casca, sentiu o aroma doce. Vincando as unhas na racha e, num “crack”, caiu. Ele e o fruto.

As unhas presas, a gravidade puxava-o a uma velocidade crescente, abriu as asas como reflexo. Conseguiu soltar-se do fruto, mas continuava a cair; batia nos ramos da árvore, nas folhas, rodopiava perdendo o norte. Era como uma pedra caída do céu. A velocidade e a gravidade fizeram com que ele perdesse a consciência.

Acordou, pouco depois, pendurado num ramo curto, dos últimos antes do chão. Foi salvo pela própria árvore, o embondeiro mais uma vez protegia-o. Agradeceu olhando-o com carinho. Sorte não existe para um pássaro, muito menos para Orfeu.

Subiu devagar, ramo a ramo, até ao seu ninho. Ao refazer os passos desta quase desgraça lembrou-se que a certo momento abriu as asas. Era a primeira vez que as abrira e repetia o movimento: lembrou-se da mãe, como a mãe saltava e num movimento natural abria as asas subindo de volta planando sobre os céus, bonita. Ele também tinha asas! Era assim que tinha de fazer, mas como?, o seu ninho era alto e se não corresse bem?, morreria.

Com a mudança de épocas, o tempo começou a aquecer, os dias mais longos. O pôr do sol laranja brincava entre as folhagens das árvores. Orfeu gostava desta mudança, as noites mais curtas custavam menos a passar. Orfeu, cresceu, as suas asas alongadas. Um amarelo que se torna vermelho no prolongamento do seu corpo.

Já descia com mestria, de ramo em ramo, para colher comida e voltava a subir, mas o seu foco deixou de ser o chão mas os céus; Orfeu observava agora os voantes chilreando como ele. Sobrevoavam-no em voos acrobáticos. Apercebeu-se que era como eles, os braços eram asas: tinham propósito. Lembrou-se da mãe, lembrou-se da sua resiliência, de todo o sacrifício. O olhar terno dela. As saudades entristeciam-no. Não tinha o ensinamento, era analfabeto de ser pássaro. Só as lembranças o faziam crer ser ave.

Foi na chegada do outono, com as folhas amareladas, as pontas vermelhas, que a primeira folha caiu dançando, ao som do vento e da floresta, até ao chão. Outra folha caiu rodopiando pelo peso desequilibrado do caule. Orfeu observava atento: sentia uma parecença com as folhas que eram da mesma cor, eram como ele. Também as folhas eram pássaros. Crescia uma motivação, mas o medo de cair segurava-o. Se algo corresse mal não teria a protecção do embondeiro.

Ele, observando toda aquela chuva de folhas, despindo as árvores, gota a gota, foi ganhando força, a sensação de ser pássaro crescia: colocou as pontas da pata no ramo e deixou-se cair, como as folhas de outono, as asas abertas.

Caía a pique, como se a terra o puxasse. A velocidade aumentava e Orfeu esforçava-se para manter as asas hirtas e abertas, mas não conseguia. Via o chão, cada vez mais perto, abriu mais uma vez as asas cerrando os olhos e...

Caiu enterrando-se numa manta de folhas de tons castanhos e amarelos, amaciando a queda. Lentamente mexia-se confirmando que estava vivo, inteiro.

Por dentro um sentimento de derrota crescia. Tinha falhado. Continuava ignorante na arte de voar, a única vitória era não ter morrido. Sentia o peito apertado e uma frustração ardia-lhe por dentro. Olhou em volta, sentindo-se minúsculo no chão, longe da altura dos ramos onde se acostumara a viver. Nunca seria pássaro. Uma revolta pela mãe o ter abandonado. De o ter deixado para ser tronco de árvore.

Levantou-se e, de galho em galho, subiu até regressar ao seu ninho. Nesse dia, ouvia o chilrear dos pássaros por cima dele, mas sentia-se menorizado, como se os outros rissem dele ao sobrevoá-lo. Orfeu aninhou-se puxando o ramo para cima dele e ali deixou-se ficar. Ignorando os voantes, as folhas cadentes, o sol, o mundo. Queria o silêncio da sua tristeza e nada mais.

No dia seguinte acordou com esperança. Observava as folhas que continuavam a cair rodopiando na leveza do vento sem resistência. Aquela suavidade inspirava-o: talvez se esforçasse demais.

Observou os voantes a planarem em círculos, batiam as asas apenas uma vez só para se manterem nas alturas. Era fácil, suave, tal e qual como as folhas de outono.

Abria as asas e imitava-os nos movimentos, estudando-os de manhã à noite, saltando de um ramo para outro, para cima e para baixo.

Nem a noite lhe trazia medo, por dormir tão exausto.

Um dia, quase no fim do outono, uma rajada de vento libertou uma velha folha que se desprendeu do fraco fio que ainda a segurava. Os olhos de Orfeu seguiam o voo; tudo pareceu muito lento, apenas o coração batia mais rápido e mais forte. A folha rodou com o vento, solta, livre, subindo na direcção de Orfeu como se o chamasse. O vento bateu nas extremidades gémeas, exímias, levitando-a.

A folha planava e Orfeu observava todo aquele momento com uma atenção obsessiva. O sol apareceu numa brecha de sombras, iluminando as costas da folha. Orfeu vislumbrado por tal beleza, via um anjo em contraluz, a subir na direcção do céu. A folha tornara-se na forma da mãe, de asas abertas.

O vento parou, e a folha caiu dançando num voo picado. Rasou Orfeu que acompanhava todo aquele voo acrobático.

Ainda iludido na visão da mãe, saltou! Abriu as asas, sentiu o vento passar por baixo delas erguendo-o e mantendo-o suspenso. Não era uma queda, mas um voo suave que o embalava e o envolvia numa dança ao sabor do vento.

No bater das asas voltou a subir, mais alto que as árvores, observando o mundo tornar-se cada vez mais pequeno experimentando pela primeira vez a sensação completa de ser pássaro.

De cima, no alto dos céus, via o embondeiro sorrir, fechou os olhos e deixou-se levar. Descontraído, uma rajada de vento soprou-o com força desequilibrando-o. Assutado com a fragilidade do seu ser, com cuidado, voltou ao ninho. Estava feliz, sentia na boca o sabor da aprendizagem.