Louis acordara um pouco agitado: tivera outro sonho com motivos egípcios. Nele, o rapaz estava diante da Grande Esfinge, que se mantinha intacta e tinha uma iluminação parecida com neon, mas que brilhava de modo natural, sem parecer estar ligada a nenhuma fonte de energia elétrica. À volta do imenso monumento, várias pessoas vestidas com roupas inspiradas no Alto Egito, mas “modernas” – ou o que se entenderia por modernas. Veículos alados completavam o cenário e havia prédios ao mesmo tempo ancestrais e tecnológicos, como se o passado que conhecemos e uma tecnologia que ainda não foi descoberta convivessem de modo pacífico. Quando uma garota de cerca de vinte anos lhe ofereceu a mão para mostrar mais do lugar, ele despertou.
—A cruz! A cruz! – bradou, abrindo os olhos, num sobressalto. Referia-se ao ankh (ou crux ansata) que vira no sonho, o símbolo da vida eterna, ou da própria vida. Quando percebeu que saíra do sonho, viu que estava arrepiado. Será que, quando se dedicasse mais ao seu romance, teria sonhos ainda mais vívidos?
Enfim se levantou. Afagou Pláton, fez sua higiene matinal e pegou alguma coisa para comer – um espresso de máquina, meio pão com manteiga e dois profiteroles que encontrara na geladeira. Enquanto comia, lembrou-se novamente da cena final do sonho: a garota usava um pingente de ankh, que brilhava muito sutilmente.
Terminou bem rápido de comer. Tomou um banho de cinco minutos e se arrumou para o trabalho, antes que se atrasasse.
Aquela manhã estava “estranha”, como se algo estivesse fora do lugar. Não era uma sensação ruim – pelo contrário –, mas parecia ter “caído em outra linha temporal”, como diria uma amiga sua, que se ligava nesses assuntos. Louis não duvidava disso, embora jamais tivesse se aprofundado em tais estudos, e a sensação de estranheza talvez fosse uma prova de que algo havia de fato mudado.
—Tudo bem, rapaz? – Jacques, sempre observador, tinha percebido que o colega agia de um modo um pouco diferente – Aconteceu alguma coisa?
—Só alguns pensamentos, mas nada grave… Pensando no que vou escrever mais tarde. – Louis criou uma desculpa qualquer. Jacques sorriu e balançou a cabeça.
Ao contrário do que acontecera dois dias antes, as horas passaram voando no trabalho. O rapaz se despedira dos colegas e, com passos apressados, voltara para seu apartamento, onde se arrumaria para a última entrevista antes de se pôr a escrever.
O fiel Asbenark hatch descansava numa vaga recém encontrada no estacionamento das Galeries Boursonnot, no coração de Dunquerqueville. Louis trancou o carro e foi a um dos elevadores: subiria até o último andar, onde combinara sua entrevista com Rosalie d’Astrournal.
Com clara inspiração nas Galeries Lafayette de Paris, a construção na capital terrana foi finalizada no início do século XX, sendo um sucesso desde então. Tornou-se um local ainda mais charmoso com a grande reforma de 2009, por ocasião de seu centenário, em que foram feitas algumas adaptações à modernidade.
Atualmente, o prédio histórico une o estilo art nouveau original a uma tecnologia de ponta, verdadeira referência a outras construções centenárias em Terre de Sainte-Sophia.
A compositora sugerira de se encontrarem no Café de l’Art, uma famosa rede lanesana com lojas mesmo fora do reino. A das Galeries Boursonnot é bastante aconchegante e acolhedora, com decoração temática alusiva à Música – sobretudo à Ópera, a principal forma de Arte admirada pelos lanesanos.
Rosalie d’Astrournal tinha pouco mais de sessenta anos, embora não aparentasse sua idade. Os longos cabelos grisalhos, com um quê de Martha Argerich, encontravam-se, ao contrário dos da pianista, quase sempre presos num coque despojado ou num chignon bem trabalhado. Quanto ao vestuário, sua marca registrada eram os tailleurs com calça, geralmente em cores mais escuras. Naquele dia, ela vestia um cinza-chumbo assinado por ninguém menos que Hugo Marchaillet.
O rapaz chegara na hora certa, mas a compositora já o aguardava. Quando ele se aproximou da mesa e se apresentou, ela se levantou e, com sua natural simpatia, cumprimentou-o com um aperto de mão.
—Enchantée, M. Rélleivaux. É um prazer poder de alguma forma participar de seu projeto. – pelas mensagens trocadas pelo WhatsApp, Louis adiantara um pouco do assunto – Conte um pouco mais a respeito dele. – deu uma breve pausa – Mas antes, um café. Peça o que quiser, por favor: o senhor é meu convidado.
Louis agradeceu e sentiu-se um pouco aliviado, já que o Café de l’Art não era exatamente como os lugares que ele costumava frequentar, pelos preços mais elevados. Não querendo abusar, e já tendo almoçado, pediu apenas um espresso e um blansaïme. A compositora pediu o mesmo doce, mas preferiu um cappuccino lanesano para acompanhar.
Logo os pedidos chegaram e o jovem pôs-se a contar desde a entrevista com Eugène Hyndormais até a conversa com Gérard de Joutronnard, sem obviamente se esquecer da incrível ajuda do Prof. Dr. Hakeem al-Najib. Rosalie ouvia tudo fascinada. Quando ele terminou, ela começou a tecer seus comentários:
—Parabéns pelo seu projeto, M. Rélleivaux. É realmente gratificante ouvir alguém jovem como o senhor pensar num projeto tão ambicioso – e, eu diria, ousado. Agradeço por estar dividindo a experiência comigo, embora a minha ajuda seja mais prática que teórica: sigo uma linha tradicional de composição, como gostam os lanesanos – e como eu gosto, claro –, então não adentrei muito em outros tipos de escrita musical, nem os contemporâneos, nem os orientais. Talvez uma exceção seja meu ciclo de canções composto em 1998, Sept Chansons Orientales. Não sei se o senhor conhece.
—Sim! Françoise Volmard, que o gravou pela Lyrique recentemente, é uma conhecida minha – amiga da minha irmã mais nova, a bem da verdade. Gosto muito da obra e a tenho como disco preferido na minha playlist do Spotify. – a compositora agradeceu com um aceno de cabeça e um “Merci” sem som – A senhora acha que seu ciclo representaria um pouco da música nesse mundo moderno egípcio?
—Oh, não, com certeza não. Essas canções são bastante tonais, com uma ou outra variação nos modos para emular o que aos nossos ouvidos soaria “egípcio” – ou até “exótico”. Esse mundo que o senhor propõe no seu projeto literário nos traria concepções sonoras muito diferentes. Talvez a música que conhecemos hoje é que seria “exótica” e estaria reduzida aos países que viriam de Grécia e de Roma, menos desenvolvidos que os conquistados ou influenciados pelo Alto Egito. Como os idiomas seriam muito distintos, sua musicalidade também influenciaria no modo de compor, sobretudo nas canções para voz e instrumentos – até os instrumentos seriam outros. O senhor percebe que seria um mundo irreconhecível para nós do século XXI, oriundos de uma tradição greco-romana e judaico-cristã?
Mais uma vez, Louis se dava conta da profundidade que seu projeto continha. Por mais que não tivesse todo o tempo para se aprofundar (ao menos por enquanto) do modo que o assunto merecia, certamente seriam necessários alguns livros para desenvolver a contento – não só do público, mas principalmente seu – aquela temática.
A compositora notou os pensamentos do rapaz e acrescentou:
—Não se preocupe: tenho certeza de que o senhor fará um excelente trabalho. Só por estar atrás de pesquisas e entrevistas para fazê-lo é um passo a mais, absolutamente louvável. Basta apenas unir suas descobertas ao que as Musas – as gregas, as romanas e as egípcias – lhe forem soprando. – assim como a maioria dos artistas lanesanos, Rosalie acreditava na força da inspiração no fazer artístico.
Louis sorriu, muito satisfeito com a apreciação sincera de uma pessoa tão reconhecida em seu métier.
—Outro blansaïme? – ofereceu a compositora; o rapaz aceitou.
Ainda conversariam por cerca de duas horas, acompanhados de outro espresso ou mais um doce – a forma esbelta de Rosalie escondia sua imensa paixão por iguarias tipicamente terranas. Perto do final, ela lançou um “desafio”:
—O senhor é bom em poesia, M. Rélleivaux?
—Mais ou menos… Mas eu sei fazer rima rica. – riram.
—Pois então eu lhe faço uma proposta: quando tiver terminado seu livro e estiver com algum tempo livre, por favor escreva um poema – um haikai, uma trova, um soneto alexandrino, o formato que quiser. Eu farei uma composição a partir dele. O que acha?
O rosto do jovem iluminou-se ainda mais.
—Eu aceito! Fico muitíssimo lisonjeado!
A compositora sorriu e acenou com a cabeça, também satisfeita.
—M. Rélleivaux, foi um imenso prazer tê-lo conhecido, mas agora preciso me despedir. Sempre que possível, mande notícias de suas criações e mantenhamos contacto: teremos outras conversas tão agradáveis quanto esta.
—Com certeza, Mme. d’Astrournal! Agradeço muito, mais uma vez, por sua disponibilidade.
Após pedirem a conta e a compositora ter feito o pagamento, levantaram-se e se despediram com outro aperto de mão. Ela foi em direção aos elevadores e ele decidiu ficar um pouco mais ali, flanando pelas Galeries, entusiasmado por mais uma experiência tão produtiva. Ainda se passaria um bom tempo até que o jovem, depois de comprar um novo caderno de anotações, decidisse voltar para casa, onde seu projeto o aguardava ansiosamente.















