O Grande Willy ia fazer mais um espetáculo no teatro São Cosme. Uma peça de marionetas que fazia sempre, há mais de 50 anos. O teatro estava vazio; das 80 cadeiras vermelhas, empoeiradas, só três estavam preenchidas por dois bêbados que dormitavam e um gaiato que aguardava o começo da peça. Longe iam os tempos em que eram 80 pessoas que aguardavam no exterior para reservar bilhetes para a semana seguinte.
O Grande Willy já tinha visitado grande parte do mundo. Dera espetáculos em inúmeros teatros reconhecidos internacionalmente e os cartazes apresentaram-no em várias línguas: The Great Willy nos states e Inglaterra, El Grande Willy em toda a Espanha, Veliki Willy na Croacia, Le grand Willy em França, Der große Willy na Alemanha.
Fosse qual fosse a cidade, os teatros enchiam-se todos os dias e aí era capaz de ficar várias semanas, fazendo três espetáculos por semana. Nos tempos de ouro, faturava bastante. Tinha sempre dezenas de rotinas, peças e marionetas novas.
Os costumes mudaram e a população já não ia muito ao teatro para ver marionetas nem para ver revista nem para ver fosse que peça que fosse. Muitos dos seus colegas menos conceituados acabaram a fazer apresentações nas ruas a troco de umas moedas que, segundo eles, dava para comer, para fumar e para beber.
Willy conseguira poupar uma boa porção que lhe permitiu, quando o negócio diminuiu, comprar um pequeno teatro em Lisboa. Lá se fixou e continuou a fazer os seus espetáculos — cada vez com menos gente — sem desistir de trazer de volta a magia que fazia os sorrisos da pequenada de outras épocas.
Chegou, então, o momento. Uma gravação anunciava o artista com uma melo-dia de suspense e alguns aplausos. As cortinas abriram-se para mostrar um segundo palco, um nadinha menor que o primeiro e o manipulador escondia-se atrás dele, não se via qualquer parte do seu corpo. Com linhas e cruzetas, manipulava os membros da primeira personagem: Cecília.
De cabelo preto emaranhado e roupas rasgadas, Cecília era uma rapariga pobre que vendia flores à frente de um gradeamento que pertencia à igreja de um vilarejo italiano. Sentada numa caixa de madeira, ela ia tirando flores de uma cesta de vime, arranjava-as e colocava-as, depois, noutra cesta. Agitava suavemente um ramo arran-jado sempre que avistava transeuntes e pregava uma cantilena.
— Flores. Flores olhem as minhas flores, tão bonitas e belas que bem que ficam nas lapelas.
Continuava a tirar flores da cesta onde estavam as mais variadas espécies e a arranjá-las.
— Flores. Flores. Há rosas de várias cores. Lírios azuis e margaridas amarelas. Vejam como são belas. O Grande Willy narrava a ação com a sua voz grossa e modelava a voz para as falas de todos os personagens. Uma música de fundo entristecedora tocava e a peça prosseguia.
Di Luca era um bandido. Apesar de andar sempre bem vestido com o seu fato e seu chapéu Fedora, era um bandido. Extorquia todos na cidade.
— Onde esta o meu dinheiro, Cecília? — perguntou severamente sem sequer cumprimentá-la.
— Mal tenho para comer. O negócio tem estado mau — justificou-se ela. — Tu bem vês que as ruas andam vazias, e a igreja também.
— Ninguém se casa? Ninguém morre? Não há batizados, ninguém nasce?
— Assim que tiver eu dou-te.
— Não quero saber Cecília. — Di Luca era sempre valentão quando se fazia acompanhar dos seus gorilas. Pontapeou o cesto que tinha as flores e acrescentou: — Deves me duas semanas. É bom que m’as pagues.
— Por favor dá-me mais um tempo.
— Não me falhes para a semana, ou será pior.
O Grande Willy retirou a marioneta de Di Luca e apresentou um novo personagem: Giuseppe, manobrando as suas pernas como se estivesse de passagem.
Mal viu, Giuseppe correu de imediato a socorrê-la e consolou a sua paixão.
– Não chores Cecília! Um dia terei dinheiro para sairmos daqui… de vez. E um dia que o apanhe sem os gorilas, ele vai ver.
Giuseppe tinha dinheiro, não era um moço de trabalhos santos, mas era bom rapaz. Ajudava quem precisava, mas era com o contrabando de bebida que ganhava a vida. Ajudava os mais desfavorecidos, principalmente Cecília. Comprava-lhe comida e comprava-lhe as flores. E como tinha grande estima por ela, de vez em quando, oferecia-lhe um adorno simples: um lenço para o cabelo ou um uma pulseira.
O cenário mudou. Desde que a sua assistente se tinha despedido que era o Grande Willy que, com um sofisticado sistema que inventara, carregava num botão deixando cair um rolo com um pano pintado. Era apresentado o novo cenário, acompanhado de pequenas frases dentro de molduras como se fazia nos filmes mudos dos anos 20.
Num dia solarengo de primavera, Giuseppe e Cecília passeavam, sorridentes, num jardim. As árvores estavam carregadas de folhas verdes e os canteiros contavam com inúmeras flores coloridas. Cecília sabia o nome delas todas. Tinham ido às compras e almoçado; tudo pago pelo seu companheiro. Foi quando apareceu Di Luca furioso.
— Não tens dinheiro para me pagares, mas tens para te pores bonita — disse ele.
— Deixa-a em paz — ordenou Giuseppe.
Di Luca insistia e com um puxão, arremessou Cecília ao chão.
O agressor tinha mais jactância do que valentia e desta vez cometera o erro de não ter os gorilas a defendê-lo. Dirigiu-se irado a Giuseppe para o esmurrar, mas este defendeu o soco e atacou-o com uma direita que o arremessou para cima de um canteiro de flores. Não descansado, Giuseppe caiu em cima dele e continuou a esmurrá-lo ainda mais até que Cecília os separou.
Di Luca, gemia no chão, maltratado.
— A ver se aprendes a lição! — disse Giuseppe. — Agora quem manda aqui sou eu.
— Meu herói! — regozijou Cecília.
Os dois beijaram-se. E, assim, fecharam-se as cortinas do pequeno palco, aparecendo O Grande Willy para fazer a vénia. Manipulava os três bonecos para que o acompanhassem com uma vénia também, como obrigavam as regras de cortesia dos artistas.
As cortinas do palco principal fecharam-se. O miúdo que estava nas cadeiras batia palmas e gritava “Bravo! Bravo!”. Não havia ninguém que aplaudisse. Os dois bêbados continuavam a dormir.
Nos bastidores, quando se desfazia da fatiota, já não era o Grande, era apenas o Willy; contava umas moedas que tirou da bilheteira e tirou uma massa já feita, misturada com rodelas de salsicha. Giuseppe já não tinha cordéis e estava sentado ao seu lado.
— Meu caro, Giuseppe — comentou Willy para o boneco inanimado —, talvez esteja na hora de pendurarmos, de vez, a capa e o chapéu.