Sabemos que o campo dos estudos folclóricos é a tradição. Há de se considerar que precisamos compreender a acepção da tradição, bem como o sentido do popular. Para tanto, indagamos por que remetemos a palavra tradição ao passado? Qual reflexão do sentido do popular buscamos nas trilhas investigativas das culturas populares? Cabe ressaltar que “a cultura não existe no ar. A elaboração e difusão de produtos culturais só é possível a partir de um suporte material, organizacional e financeiro.”

Então, explicar a tradição não é tarefa fácil porque remete a uma, digamos, sensação de sonho, seja realizado ou imaginado, e isso tudo remete ao passado. Temos também a questão do meio rural, lugar privilegiado que foi adotado para compreensão do folclore e da cultura popular. Havia, de certo modo, um zelo conservador que foi construído ao longo dos anos referente às pesquisas nas culturas populares.

Observa-se que os termos folclore e tradição foram caracterizados pela tendência do desaparecimento das manifestações antes que se apague da memória do povo. Para o pesquisador Luís da Câmara Cascudo, “uma manifestação é folclórica quando além de popular constitui-se em sobrevivência". O folclore seria, portanto, uma manifestação do passado no presente, ponto de vista encontrado também em Celso de Magalhães. Em outros termos, "um conjunto de resíduos, de fragmentos e costumes e práticas culturais desaparecidas.”

Os interesses contrastantes, a questão da manutenção e sobrevivência, os benefícios inconscientes gerados pelas transformações na era digital fazem alimentar a reflexão das trilhas investigativas do sentido do popular.

Precisamos refletir que encontramos nas culturas populares aspectos ambíguos que não impedem sua transformação. Falar de tradição, por exemplo, é um importante passo na busca por essas reflexões.

Pode-se falar, portanto, de uma tradição. Observa-se que neste termo não precisa ter, obrigatoriamente, a acepção de recusa à mudança, como querem muitos folcloristas. Referimos-nos à tradição com o mesmo significado que o termo tem quando utilizado para cultura erudita, isto é, remetendo uma relação de uma obra artística com a outras, anteriores ou contemporâneas, do mesmo campo artístico ou campos diferentes.

Ou seja, a tradição é um termo de difícil assimilação, pois pensamos que tradição é passado, mas tradição é transformação, porque constituem elementos do passado no presente, transmitindo uma sensação de sonho alimentado pelo imaginário coletivo. Nesse ponto, há outras questões para refletirmos: a influência do meio rural como fonte dos estudos folclóricos, o discurso do desaparecimento das manifestações, do zelo conservador nos registros de alguns folcloristas.

Assim, para que e a quem a tradição serve? Talvez, sirva como elemento fundamental para as indagações humanísticas. A tradição é uma fábrica de descobertas nas culturas populares que favorecem as indagações trazendo a dinâmica nas intensificações de trilhas investigativas. A tradição é o elemento crucial na construção social de uma sociedade porque reserva características da criatividade, do imaginário coletivo e do cotidiano que favorecem o processo da mudança, da transformação sem perder a essência do encontro existente nas relações sociais. O pesquisador Sílvio Romero dizia, “...Entendemos por outro modo; reconhecemos no povo a força de produzir e o direito de transformar a sua poesia em contos.” O povo cria e recria maneiras de sobrevivência em seu cotidiano diante dos acontecimentos na dinâmica da vida. A criatividade do povo é ponto crucial na compreensão da dinâmica do sentido do popular.

Nesse quadro, adotaremos um aspecto importante que é a reelaboração constante mediante as transformações nas culturas populares. Como afirma Tauk Santos:

Da relação desnivelada que se estabelece entre as culturas populares e a cultura hegemônica resultam duas características centrais das culturas populares que são a ambiguidade política e a capacidade de refuncionalizar as propostas do hegemônico como forma de resistir ou simplesmente adaptar os usos dessas propostas as suas necessidades cotidianas.

Essa capacidade de reelaboração, é campo de indagações existentes nas necessidades das culturas populares, e por isso a dificuldade hoje em dia de separar o popular do massivo. Como exemplo encontramos temas que anseiam novas propostas de inclusão bem como salienta a professora e pesquisadora Tauk Santos.

Os exemplos são muitos, na quadrilha junina “Joaninha Caipira – Para o Maior Arraial da Amazônia, a quadrilha vem com o tema Alice na Amazônia das Maravilhas”, onde faz uma adaptação regional Amazônica do conto infantil, escrito por Lewis Carroll. Isso também acontece na culinária como recentemente foi a explosão do morango do amor “O Morango do Amor virou febre em 2025 e se espalhou rapidamente nas redes sociais. A receita que mistura morango, brigadeiro e caramelo movimentou confeitarias e elevou o preço da fruta....” Já no desfile da escola de samba do Rio de Janeiro, teremos em 2026 o tema da “Acadêmicos do Grande Rio – A Nação do Mangue. A tricolor de Duque de Caxias vai celebrar o movimento Manguebeat, que revolucionou a música e a cultura pernambucana nos anos 1990. Um enredo sobre criatividade, resistência e brasilidade.”

Nos desfiles cívicos da Proclamação da República no Brasil foram vários exemplos espalhados pelo país. Encontramos na cidade de Palmares em Pernambuco, “com alegria e orgulho, os idosos do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos da Pessoa Idosa (SCFVI) desfilaram neste 07 de setembro, celebrando o tema “Inovação Tecnológica e Sustentabilidade a Serviço da Vida”.

Mostrando que a experiência e a sabedoria caminham lado a lado com o futuro, eles deram um show de cidadania, esperança e inspiração! Prefeitura dos Palmares, Trabalho e Desenvolvimento! Como estes há inúmeros acontecimentos que necessitam de nossos registros. Precisamos alinhavar essas reelaborações que ocorrem nas culturas populares com registros interessantes e curiosos.

Temos que valorizar a existência da cultura popular, do folclore e das culturas populares. Existem várias maneiras de valorizar a cultura popular: a primeira pela dimensão de símbolos que possuímos através da comunicação, essa espetacular forma de gestos, mandingas da nossa cultura, afirmam o valor de cada manifestação; a segunda são questões de rivalidades entre as manifestações, a disputa acelera a competição sadia, incentivando a criatividade, e a terceira é afetividade, o afeto faz da manifestação uma divindade, Maria Isaura Pereira de Queiroz afirma que: “O folclore se liga, pois, especificamente a grupos de envergadura demograficamente modesta; em seu ambiente de relações íntimas e carregadas de afetividade se formam costumes e peculiaridades, crenças, lendas, que tornam um grupo diferente dos demais”. Assim, o afeto é a principal característica de valorização cultural entre os brincantes.

As práticas culturais populares devem ser incentivadas e nada melhor do que registrar esses incentivos. Para tanto, Canclini afirma:

(...) a especificidade das culturas populares não deriva apenas do fato de que a sua apropriação daquilo que a sociedade possui seja menor e diferente; deriva também do fato de que o povo produz no trabalho e na vida forma específicas de representação, reprodução reelaboração simbólica de suas relações sociais.

Digamos que devemos ficar sempre atentos às transformações sociais e às mudanças culturais. Primeiro devemos romper a dicotomia rural/urbano e depois questionar a tradição. Exercício que nos leva a pensar sobre a estética do popular e o seu sentido delimitando o fato folclórico e seus elementos culturais. O pesquisador Oswaldo Elias Xidieh traz uma preocupação com a falta de registros dos momentos sociais. Para ele a cultura popular é definida como aquela.

(...) criada pelo povo e apoiada numa concepção do mundo toda específica e na tradição, mas em permanente reelaboração mediante a redução ao seu contexto das contribuições da cultura erudita, porém mantendo sua identidade.

Carecemos de registros das trilhas investigativas do sentido do popular. Registro estes que ajudam a refletir todo esse percurso das culturas populares. Mesmo com a facilidade da era digital, devemos registrar a dinâmica das indagações humanísticas das culturas populares. As culturas populares apresentam como características o sentido do popular.

Talvez a coisa mais alentadora que esteja ocorrendo com o popular é que alguns folcloristas não se preocupam só em resgatá -lo, os comunicólogos em difundi-lo e os políticos em defendê-lo, que cada especialista não escreve só para seus iguais nem para determinar o que o povo é, mas antes para perguntar-nos, junto aos movimentos sociais, como reconstruí-lo.

(Canclini, Culturas Híbridas. p.281)

Ou seja, o massivo e o popular se entrelaçam diante de suas necessidades na era digital. O acesso, o consumo e imaginário afinam as culturas populares. Na verdade, a sobrevivência das culturas populares depende desse afinamento. Daí a comunicação constroem e reconstroem as relações sociais nas culturas populares. Então, como compreender a nova construção social a partir das trilhas investigativas dos sentido do popular?

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