"As crianças indígenas são orientadas, não educadas, e aprendem a partilhar o que têm e o lugar onde vivem", Ailton Krenak, 2022. Recentemente, fui convidada para participar de uma roda de conversa para tratar de infância indígena. Confesso que meu primeiro pensamento foi o de recusa pois, condicionada por uma perspectiva ocidentalizada, já localizei a noção de infância na competência da educação escolar, pedagogia e psicologia, como grandes áreas de produção de saber sobre infância. Mas, pensando com mais calma, enxerguei a possibilidade de confluir sobre processos de refazimentos de nossas histórias enquanto sujeitos indígenas e, de que maneira o conhecimento ocidental tenta nos localizar e fixar em suas maneiras universalizadas de existir. Ao me perceber como resultado de minha infância, aceitei o desafio.

Sem intenção de realizar anacronismo, trago pra essa escrita a fala de Varnhagem1 , do séc. XIX, que afirma o seguinte: “Para os índios, povos na infância, não há história: só há etnografias”. Embora seja uma frase, em parte, já negada pela sociedade contemporânea, é nela que podemos encontrar os rastros das ideias de projeto de colonização e de colonialidade que fraturam nossos corpos até os dias atuais.

Para o ocidente, em sua invenção da infância, ela se caracteriza como um estágio de incapacidade de produção de conhecimento, de tecnologias e de contribuição social, além de ser um período considerado frágil e de limitação de informações, são as famosas faixas etárias. Em outras palavras, a ideia de infância produzida pelo ocidente e empurrada goela abaixo sobre os nossos Corpos-Territórios-Memória não tem nada a dizer sobre nós, povos indígenas. Pois nós, ao nascermos, já somos e “o ser é a essência de tudo” (Krenak, 2022). Portanto, essa escrita, que é uma escrita indígena, objetiva desmentir a noção de infância ocidentalizada sobre nós.

Para iniciar esse refazimento, é inconteste frisar que somos o resultado do violento projeto da colonização e que experimentamos em nossa contemporaneidade o projeto de colonialidade imposto pelo neoliberalismo global, portanto, estamos em guerra, seja ela linguística, histórica, político, social e epistêmica. Estamos lutando para continuarmos sendo Sujeitos de Constelação. Dito de outra maneira, estamos em disputa, em relação de poder assimétrica, pela possibilidade de existência de nossas diversidades pois somos, ao mesmo tempo, sujeitos indivíduos e coletivos. Dessa maneira, não existe infância indígena, mas infâncias, no plural.

Somos mais de 305 povos indígenas e falamos, ainda hoje, diferentes línguas indígenas, o que significa que temos diferentes maneiras de compreender o mundo e de construir epistemologias e tecnologias. Portanto, mesmo com todo meu esforço, jamais poderia ter condições de dar respostas sobre infâncias indígenas, mas posso e vou contribuir com o debate e meu primeiro passo é afirmar que nossa perspectiva de infância é diversa e plural.

As crianças indígenas, assim como todos os sujeitos indígenas, são historicizadas e são agentes sociais. Nesse sentido, para falarmos de infâncias indígenas, precisamos definir o povo ao qual nos referimos e a condição de intersecção histórico político-social em que ele se encontra. Ou seja, se são povos isolados dos direitos do Estado, de recente contato, aqueles que vivem em seus territórios tradicionais ou em contexto urbano/cidade — que também é território indígena. São essas intersecções que determinam, em estruturas e acontecimentos, as relações dinâmicas dos sujeitos indígenas que se encontram em condição de infância.

Das pesquisas realizadas por não indígenas que li sobre as infâncias indígenas, muitas delas estão romantizadas e buscam encontrar indígenas com as características do período da colonização. Crianças que andam sem roupas e que brincam com seus arcos e flechas. Ainda temos essas crianças, mas elas são parte de um todo que coexiste com outras e diversas relações sociais, como as mencionadas anteriormente. A sociedade não indígena cria linhas etárias para determinar até quando se pode ser criança, jovem, adulto ou velho. Além disso, ao entender a infância como aquela época da incapacidade de produzir conhecimento e de contribuir com a sociedade, o Ocidente coloca a ideia de infância dentro de uma redoma de vidro, prometendo proteção no lugar da negação de suas produções intelectuais, mas essa pseudo proteção é específica: possui como estratificação a perspectiva de raça e de posição social. Em outras palavras, as infâncias indígenas, negras e quilombolas não cabem nessa redoma de vidro.

Em sua esquizofrenia, essa sociedade ocidentalizada, ao mesmo tempo em que promete uma pseudo proteção, olha aquela criança como um recurso que, em um futuro próximo, precisará devolver para sociedade ocidental todo o capital investido em seu “projeto de vida”. Sobre essa questão, o parente Krenak afirma que “Quando atuamos no sentido de incidir sobre o design original de um ser, seja ele humano ou não, e formata-lo para que tenha alguma utilidade, estamos incorrendo em uma violência sobre o percurso que ele já está habilitado a percorrer aqui na Terra” (Krenak, 2022).

Nas sociedades de povos indígenas, diferentes lógicas atuam na organização social enquanto povo. Por exemplo, o povo Sateré-Mawé possui o ritual da Tucandeira como demarcador de transição entre a infância e vida adulta, mas esse processo é realizado apenas pelos meninos. As meninas Sateré-Mawé não passam por esse marcador. O povo Tikuna, outro povo do Amazonas, realiza o ritual da Moça Nova, que tem como referência a menstruação como passagem da infância para a vida adulta, mas os meninos Tikuna não possuem esse mesmo marcador. O povo Munduruku, embora não possua nenhum marcador da relação entre a infância e a vida adulta, possui pelo menos duas palavras que tratam das etapas da infância.

Quando a criança é muito pequena, é uma criança de colo, que se alimenta de leite materno, ela é chamada de bekicat. Nesse período, essa bekicat tem muitas necessidades e toda a comunidade procura cuidar daquele ser. Depois de um tempo, a bekicat cresce, começa a andar, a falar e a construir sua interpretação de mundo, é quando ela passa a ser chamada de bekitkit. O que estou tentando mostrar com esses três diferentes exemplos é que, em perspectiva indígena, temos muitas e diferentes maneiras de pensar a noção de infância e que a ideia de infância universalizada apenas violenta nossas múltiplas possibilidades de sermos infâncias.

Para buscar uma melhor compreensão sobre as infâncias indígenas é preciso compreender que somos sujeitos indivíduos coletivos que nos respeitamos em nossas diferenças, em outras palavras, somos indivíduos, mas ao pertencermos a um povo, também somos coletivos. Toda infância indígena é a continuação de seu povo e é extensão de sua cultura, língua, território, pois somos Corpo-Território-Memória. Ao sermos Corpo-Território (Braulina Baniwa et al, 2023) temos uma conexão profunda com a Terra. Nossa composição corpórea carrega consigo toda a herança espiritual e cultural de nossos territórios. É durante nossas infâncias que nos conectamos com os rios, os animais, com os diferentes serem e formatos de gentes que, assim como a gente, fazem parte da constituição desse plano terrestre. Essa conexão é fundamental para que a infância de hoje seja o adulto consciente do amanhã. Quando falamos que o futuro é ancestral, ao mesmo tempo, lembramos que o futuro está no agora, nas nossas infâncias.

As interferências em nossos modos de vida, causadas principalmente pelas alterações climáticas e de ordem econômica, interferem de igual maneira em nosso Corpo-Território. Os diferentes processos de colonização de hoje, o projeto de colonialidade, tentam, incansavelmente, apagar e modificar nossos modos de vida e de compreensão enquanto sujeitos de conexão com a Terra, a fim de nos eliminar. A exemplo disso, temos as infâncias indígenas em contexto urbano. As infâncias por quem se interessam o contexto urbano, aquelas que têm direito a saúde e educação. Aquelas que têm sua ‘infância’ respeitada não são as infâncias indígenas. Existe um local para as infâncias indígenas em contexto urbano, a periferia. Como consequência, nossas crianças indígenas, ao não terem vínculos profundos com a Terra, acabam sofrendo as sequelas desses distanciamentos. Violências e preconceitos acabam sendo predominantes na vida desses jovens.

Embora em contexto urbano exista uma constante potência de resistência na manutenção das culturas indígenas, é inconteste a urgência de políticas públicas que levem em consideração a existência de crianças indígenas em diferentes contextos, entre eles no contexto urbano. Dessa maneira, educação diferenciada, manutenção e fortalecimentos das línguas indígenas, respeito às diferenças e manutenção da cultura de seu povo serão presentes na vida dessas crianças. Quando nosso Corpo-Território está ausente fisicamente de nossos territórios, precisamos ativar nosso Corpo-Memória.

É na manutenção e fortalecimento de nossas memórias ancestrais que poderemos alimentar e fortalecer a essência de nossas infâncias indígenas. Mas, para que nosso Corpo-Memória seja alimentado, precisamos de condições de estruturas e acontecimentos. Quando nossas infâncias não possuem mais contato físico com o rio, ele precisa ser ancestralizado, lembrado e rememorado, para que nossas infâncias possam ter suas memórias críticas acionadas pelas memórias ancestrais e pelas memórias ativas àquelas do tempo presente. Célia Xakriabá (2019) afirma que é no lembrar o passado, dialogando com o presente que nossa memória crítica se fundamenta.

A memória cristalizada do indígena do período da colonização já não nos serve mais, como afirma Edson Kayapó (2021). Manter, fortalecer e reproduzir nossos Corpos-Territórios-Memórias hoje é mais um dos nossos processos de luta e resistência. Dessa maneira, garantimos o refazimento das nossas histórias, produzimos nossas escritas indígenas e alimentamos nossas infâncias. Nesse processo que é dinâmico e sempre em movimento, garantimos que nosso futuro seja ancestral.

Notas

1 Francisco Adolfo de Varnhagem era visconde de Porto Seguro, diplomata, militar e historiador. Ele escreveu a obra História do Brasil: História Geral do Brasil. Trabalho realizado entre 1854 e 1857.

Baniwa, Braulina. Indígenas mulheres: corpo território em movimento. 2022. 102 f., il. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) — Universidade de Brasília, Brasília, 2022.
Correa Xakriabá, Célia Nunes O Barro, o Genipapo e o Giz no fazer epistemológico de Autoria Xakriabá: reativação da memória por uma educação territorializada/, Célia Nunes Correa Xakriabá. Brasília – DF, 2018. 218 p. Dissertação de Mestrado - Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília.
Kayapó, Edson. O silêncio que faz ecoar as vozes indígenas. In: Ensino de História: reflexões e práticas decoloniais. Suzana Cesco e tal (Orgs.). Editora Letra 1, Porto Alegre, RS, 2021.
Krenak, Ailton. Futuro Ancestral. Companhia das Letras, São Paulo, 2022.