Está uma mulher a pedir à entrada do parque de estacionamento do Pingo Doce — não levanta os olhos, fala baixo, talvez nem peça, talvez murmure só por hábito — e no antebraço carrega um saco transparente com três latas de salsichas e o frio da manhã preso à pele. Quando saio, entrego-lhe os pacotes de bolachas que levei de propósito e sigo caminho, sem heroísmo, apenas com pressa de desaparecer. Pelo reflexo de uma montra observo os outros — os que se desviam, os que fingem atender o telemóvel, os que mudam de passeio como se a pobreza fosse um vírus ou uma recordação: ninguém está a salvo.

Apago o cigarro e subo devagar, com as compras nas mãos e a cabeça algures. A caixa de correio rebenta de panfletos: canalizadores, desentupimentos, compra de carros velhos, um certo Doutor Karamba que garante milagres no amor, nos negócios, no jogo, nas dívidas, tudo. Arrumo as compras com movimentos automáticos, faço qualquer coisa rápida para enganar o estômago e voltar ao romance onde a personagem principal não avança, recusa-se a viver mais do que as frases onde a deixei.

Era homem de não deixar que lhe entrassem no passado, porta da rua era porta da vida, só tinha serventia de saída, que a terra lhe fosse leve, era o que sempre pensava. Às vezes, com uma alegria ingénua e as mãos a reterem apenas o fundamental, desdobro-me em caminhos. A minha vida está em ponto morto, com o tempo a avançar, espero a morte como se fosse uma pétala de reduzida magnificência a cair.

Nunca consegui estabelecer uma intimidade com a natureza das coisas, só participo na vida de través, espécie de culto que espreito das esquinas. Sinto-me um inquilino que regista os sons da noite, sussurros de gente anónima na cartografia da cidade. De dia aproximo-me de um instinto doméstico num mundo que acredito pertencer a um berço comum, falantes de um mesmo léxico que, ainda assim, nos afasta lentamente.

À revelia da sobrevivência sinto ser demasiado tarde para me agarrar a ficções, ficamos na orla do isolamento a apanhar bocados desgarrados de um amor demorado, um risco de giz a sublinhar as palavras que começo a escrever a eito, uma verdade à espera de voz sem temer o olhar do ponto final.

Saio à tarde e demoro-me no mar enquanto o dia arrefece, à noite acendem-se as luzes, barcos e estrelas a unir mar e céu em concreto. Sou tantos quantos cabem num instante sem lhes perguntar pelo passado, os dias sem espessura vão-se gastando na atmosfera remendada da memória, essa vírgula do pensamento, poder outorgado pela natureza a avisar que o nosso futuro é uma miragem.

Por trás de qualquer coisa que eu faça existe a sombra do que escrevo, a sorte de quem vive virado para o lado oposto. As pegadas nada dizem sobre os passos, apenas a imagem fugaz do corpo a evadir-se da responsabilidade, uma vida em espera, umas vezes em silêncio, outras em sobressalto, na maior parte uma sombra leve a invadir o peito, um momento em que somos outros, inteiros.

Recordo-me das vezes em que fui esperar amigos ao aeroporto — numa delas estava no Starbucks, cheio de vozes, línguas, cheiros, nacionalidades. Tinha acabado de ver o “À bout de souffle”, filme desconcertante como quase tudo no mundo. Assisto à azáfama: Homens engravatados empurravam malas, motoristas de hotéis com placas, transfers com turistas sonolentos. Um casal pediu-me dinheiro — adiantei uns trocos, pensei como sempre penso, que é para droga e não para comida como dizem. A fauna urbana: barrigas, abdómens definidos, bonés, kispos fluorescentes, vozes em várias línguas a cruzar-se sem se tocarem. Duas mulheres sentaram-se ao meu lado com cães minúsculos, eléctricos, quase brinquedos.

À minha frente, encostado a um pilar, um homem de fato de treino preto justo com a águia do Benfica, kispo azul, lenço vermelho. Julguei-o polícia à paisana, à caça de terroristas, e por segundos tive vontade de largar a mochila só para ver o que faria. Ninguém falava com ninguém. O casal voltou, agora a pedir em inglês — continuo a achar que é para droga. Um grupo de miúdos grita, os pais mandam-nos calar. As mulheres dos cães falavam sobre música e sofrimento, como se a dor tivesse um tom musical, sustenido talvez, e sobre os maridos, os “nossos maridos”, diziam, como se fosse apenas uma expressão, um pronome possessivo com prazo de validade.

Chegou então uma mulher alta, casaco de peles comprido, recém-chegada de um voo. Aproximou-se do homem do Benfica e deu-lhe um beijo. Não era polícia. Olhei o relógio — o voo continuava atrasado. Distraí-me com os anúncios e fechei o caderno.

É assim que as personagens aparecem, como manchas na retina depois de olhar o sol. Tomo notas nos sítios mais estranhos e às vezes queria que certas personagens tomassem outro rumo, mas a narrativa real não se comove, segue as rígidas leis da física. Sei que amanhã, quando passar pelo Pingo Doce deve lá estar a mulher, ainda nova, de saco no antebraço com alguns produtos de marca branca, com o olhar a denotar cansaço, como quando reencontramos o reflexo no espelho sabendo que, de alguma forma nunca deixará de estar lá e, ao invés do romance que pretendo acabar, a imagem ocupará todo o espaço e as palavras destituídas partirão para o exílio.