Dioniso sobreviveu ao ódio de Hera. Mesmo perseguido, conseguiu nascer duas vezes. Primeiro, da coxa de seu pai Zeus e, depois, renasceu no submundo de seu tio Hades. Do seu coração foi feito magia e se transformou em poção de romã. Vinga-se Dioniso-Iaco, deus do êxtase.
Junto aos mortais, enlouquecido, proporcionou à humanidade a embriaguez e o delírio. E na mesma festa, regada a bom vinho, homens, mulheres, sátiros, animais e afins se libertavam das amarras da realidade.
...depois de ter bebido, começou a dançar de prazer e disse para o deus: Onde descobriste, estrangeiro, esta água cor de púrpura? Onde encontraste um líquido assim tão delicioso? Pois não é este que corre à superfície da terra. Porque se um desce até ao peito provocando uma delicada sensação de prazer, este então delicia o nariz mesmo antes de chegar à boca; e embora seja frio ao tacto, a verdade é que, quando corre pelo estômago abaixo, liberta, lá do fundo, um fogo de prazer.
E como deus do vinho, Eleutheros abençoa e protege todo aquele que produz a bebida divina da alegria.
Na Antígona, de Sófocles, o coro no quinto estásimo da peça, invoca o deus num agitado canto lírico acompanhado de danças e pantomimas em sua honra, para que cure o seu povo:
Ó tu que tens muitos nomes,
glória da filha de Cadmo,
raça de Zeus tonitruante,
tu que a ínclita Itália
proteges, e tens cura
dos vales hospitaleiros
de Deméter Eleusínia,
ai! ó deus Baco!Tu, que em Tebas habitas,
das Bacantes a metrópole,
junta da torrente húmida
do Ismeno e por cima
donde está a semente
do dragão fero!Sobre a rocha de dois cumes
os fumegantes brandões
te têm visto, onde andam
as corícias, bacantes
Ninfas, e a Fonte Castália.Das montanhas de Nisa
os pendores cheios de hera
são teu cortejo,
e as verdes margens cobertas
de vinhedos, quando o grito
de palavras imortais
soltam de – Evoé! –
porque as ruas de Tebas
vais visitar.Dentre todas as cidades
é esta a que mais honras,
com tua mãe fulminada.
E agora,
que uma afecção violenta
lhe ataca todo o povo,
vem com passo que nos cure
pela encosta do Parnasso
ou p’lo estreito marulhante.Ó tu que reges a dança
dos astros ignispirantes,
senhor das vozes da noite!Aparece,
ó filho de Zeus, meu príncipe,
com a tua comitiva
de Tíades, que em delírio
dançam a noite inteira
por Iaco, o seu senhor!
No Tarot Mitológico, Dioniso é o arcano do Louco, um jovem selvagem dançando em abandono à beira de um precipício. É o inconsciente sem compreensão que se atira para a vida. No Louco há espontaneidade rumo ao desconhecido. Tudo começa e recomeça nele.
No teatro, Dioniso é o deus. O desenvolvimento do teatro, nascido das festas dionísicas, onde os participantes usavam máscaras para as suas personas e faziam as transformações dramáticas, se deve ao culto prestado a Baco. Os rituais centravam-se no tema morte-renascimento e, com agentes alucinógenos no vinho, induziam transes que eliminavam inibições.
No carnaval, Baco é homenageado. Os bacanais eram orgias que levavam a extravagâncias e desordens sociais. Na antiguidade, o carnaval chegou a ser proibido por volta de 186 a.C, mas a transgressão não silencia e as fantasias continuam até hoje.
Seja como o deus da colheita das uvas, da fabricação do vinho, dos excessos, da loucura e do teatro, Eleutheros é resistência. Resiste bravamente ao conservadorismo, aos fatos e a ordem lógica das coisas. É pulsão de vida, mudança, coragem. Ele sabe que é divino mesmo nas sombras. O impulso irracional abre os horizontes e expulsa a monotonia, a banalidade e os planejamentos. A vida não dá garantias. Ele sabe.
O deus selvagem criativo está em nós. Somos Dioniso. Estamos na festa da resistência num mundo que aprisiona e normaliza crueldade, que uniformiza e castra. Quando não se suporta mais tamanha repressão, vamos nos encontrar com o deus da luz e recomeçar. Sem planos de ação, com a rebeldia de toda juventude, com a insubmissão de toda alma.
E viva Brômio, o fim, o início e o meio de todo o caos, aquele que acompanha a jornada de mistérios da arte de viver. Com as taças cheias não se degusta o vazio. Na festa da liberdade, os loucos dançam buscando o abismo, de onde não voltarão e ainda têm a chance de voar.
E na festa da nossa psique, o Dioniso interno deu match com o incógnito, se jogou e curtiu. Somos todos convidados para incendiar o nosso lado deus do êxtase e invadir os salões e as ruas; os becos e varandas da imensidão de realidades que queremos desbancar. Um brinde a ousadia de resistir! Mais um brinde a ousadia de ser quem se é! E mais um brinde... e mais um... a noite inteira. E depois do êxtase inebriante, Dioniso que habita em mim saúda Dioniso que habita em você. E que nós e todos os seres sejamos livres. Como no teatro, como no carnaval.