Há pouco tempo Henry havia se mudado para o Rio de Janeiro. O ano era 1994, ele tinha em torno de 25 anos e para um jovem trabalhador comprar um carro não era uma tarefa simples. Não existiam grandes linhas de financiamento e a melhor opção se restringia aos consórcios automotivos, onde se pagava uma parcela mais acessível e, de tempos em tempos, era possível dar um lance de um valor mais alto na esperança de que fosse o vencedor.

Seu velho Chevette vermelho de 1984 havia ficado para trás. Não passava pela sua cabeça trasladar o velho carro de Salvador para o Rio. Afinal quantas vezes já o havia deixado em algum canto da cidade no retorno de alguma noitada, para desespero da sua mãe que acordava e não encontrava o carro na garagem. Não conseguia imaginar fazendo o mesmo numa cidade que não conhecia por completo, ainda mais sendo o Rio.

Por morar em Copacabana e trabalhar em Botafogo, concluiu que se locomoveria facilmente de ônibus até conseguir o tão sonhado carro novo, carro zero. Se locomover de ônibus era a parte simples, dada a farta opção na Zona Sul. Ainda não existia metrô em Copacabana. Quanto ao carro novo? Não era tão simples! Precisava dar os lances no consórcio! E o dinheiro para os lances? Primeira vez enfrentando os boletos sozinho (aluguel, luz, água, condomínio, comida, diarista, roupa para lavar, uma lista interminável).

Há algum tempo tentava vender o velho chevette sem sucesso. Um primo, que estava utilizando o carro, terminou batendo e o seguro deu perda total. Bingo! Agora, ele tinha algum dinheiro para suprir seus eternos déficits mensais e dar um lance no consórcio. Na terceira tentativa, finalmente seu lance foi o ganhador. O carro seria entregue! Um corsa wind preto. Na época um carro popular sensação pelo seu novo ‘designe’. O problema? O consórcio era de Salvador e o carro seria entregue lá.

Henry viaja até Salvador para buscá-lo. Pensa “Finalmente terei uma maior autonomia na cidade! Para além da Zona Sul! Para São Conrado, Barra, Recreio, praias de Niterói, Região dos Lagos! Finalmente a independência motora!” Seu padrasto, talvez preocupado, talvez pressionado por sua mãe, se oferece para fazer a viagem Salvador-Rio compartilhando a condução. Uma prima sua, Nina, resolve aproveitar a oportunidade e ir conhecer o Rio.

No início da viagem, ainda na travessia Salvador-Itaparica pelo Ferry-Boat, Henry resolve tirar uma foto no nível onde carros e pessoas se aglomeram e o seu padrasto dispara “Está foto parecerá a contracapa do álbum Música de Rua de Daniela Mercury. Nós e o povo ao redor!” A constatação desse veredicto após a revelação do negativo transforma está foto num clássico da viagem!

Chegam ao Rio! O seu padrasto regressa após um ou dois dias. Henry retorna a sua rotina de trabalho. A Nina ao longo da semana se encontra com uma prima carioca e passam a fazer alguns passeios tradicionais da cidade (Cristo, Pão de Açucar, praia...). Até que a Nina, numa noite, lança “Quero pular de asa delta!”. Ele responde “Ok! Já subi a Pedra Bonita, mas nunca pulei de asa delta. Vou falar com uns amigos e marcamos para o final de semana.”

No final de semana, seus amigos cariocas Vina e Little Anne se juntam a eles e, partem antes das 7:00 para a Pedra Bonita. A escolha do horário é justificada por Vina como sendo o melhor momento para não serem barrados na entrada para a Pedra Bonita e para aproveitarem a trilha e a vista por lá antes do ansiado salto de asa delta da Nina. Trilha e vista apreciada, partem para a rampa da Pedra Bonita, onde ocorrem os saltos de asa delta e parapente.

A coragem da Nina para pular de asa delta atiça nos demais uma discussão para saber quem mais conseguiria. Little Anne imediatamente admite que estaria fora. Os demais debatem, debatem, até Vina confessar que também não toparia. À medida que Nina se prepara para o tão sonhado salto, o clima esboça uma leve mudança. O piloto da asa delta a apressa e saem os dois correndo pela rampa para se lançarem no precipício.

“Aaaaaaaaaaa!!! Aaaaaaaaaaa!!! Aaaaaaaaaaa!!!!”

Nina grita intensamente ao longo da descida num misto de desespero e frenesi! Um outro piloto na rampa comenta “Para descer com tanto grito tem que pagar mais caro!” e na sequência pergunta “Quem é o próximo?”.

Todo o processo da preparação para o salto da Nina, os gritos dela, a leve mudança do clima e as longas discussões filosóficas entre Henry, Vina e Little Anne terminam por minar o pouco da coragem que ainda restava e então Henry responde “Ninguém! Vamos descer para resgatar a Nina na Praia de São Conrado!”. Chegando a São Conrado encontram a Nina ainda em completo estado de frenesi e, agora, também de alegria. O desespero já havia passado! Henry se arrepende um pouco de não haver pulado. Resolvem que precisavam comemorar aquele feito indo para a Praia do Pepê na Barra. Precisavam tomar umas cervejas e apreciar toda a beleza da praia do Pepê. Em meados dos anos 1990, todos pareciam capas de revistas no Pepê. No auge dos seus 20 e poucos anos até se sentiam humilhados por lá, mas não importava.

Entre algumas cervejas, biscoito Globo e apreciação da ‘fauna’, o tempo passa e a fome aperta. Concluem que precisavam comer e resolvem sair da praia. Encontram uma baiana de acarajé num quiosque do calçadão.

A tríade formada por Henry, Vina e Little Anne tinha sempre um potencial etílico explosivo! Entravam numa espiral de excitação, alegria, conversas e zoações intermináveis! Eram os perfeitos amigos bêbados. A visitante Nina não bebia nesta intensidade.

Little Anne pergunta quanto custa o acarajé. Ao saber do preço considera um absurdo e fala que quando está em Salvador não paga isto por um acarajé. Pede para Henry confirmar, como se a legitimidade de ele ser baiano fosse a certificação notarial necessária para a sua afirmação. Ato contínuo, gesticulando compulsivamente com os braços abertos, repete sem parar “R$ 3,00 um acarajé! Absurdo! Muito caro!”.

Little Anne é uma mulher loira de cabelos lisos, magra e com aproximadamente um metro e sessenta de altura. Aquela figura esguia movimentando-se lentamente apressada com os braços abertos e voz embargada de teor alcoólico, atiçam Henry e Vina a seguir incentivando-a a repetir os seus gestos e frases até conseguirem registrar aquele momento numa foto, que se tornaria em um dos clássicos deste grupo.

Com toda a excitação causada pelo debate do preço do acarajé, alguém dispara “Vamos tomar um chope na Clipper?!” A Clipper, tradicional choperia do Rio, fica no Leblon e, com exceção da Nina, todos estavam bêbados na Praia do Pepê na Barra. Ainda não existia a Lei Seca e como todos falavam à época “Deus protege as crianças, os bêbados e os loucos!”.

Estavam em dois carros. Por alguma razão, Henry pede para Nina o aguardar no calçadão junto a Vina e Little Anne, pois o seu carro estava num quarteirão atrás. Com alguma dificuldade Henry encontra o seu carro, conduz até a pista da praia, olha para o calçadão e não encontra ninguém. Conclui que Nina já teria ido com os demais para a Clipper e segue para o Leblon.

Chegando ao Leblon, Henry não encontra ninguém. Imagina que devem estar buscando um local para estacionar e para ajudar nesta espera resolve já pedir um chope. No segundo ou terceiro gole do chope, ele é surpreendido por sua prima falando apressadamente e perguntando de forma agitada a razão dele tê-la abandonada no Pepê. Henry responde que não a abandonou, que ela estava com seus melhores amigos.

Vina e Little Anne descrevem a situação, falam que estavam todos no calçadão o esperando e de repente ele passou, olhou para eles e seguiu. Relatam a sequência de diálogos com a Nina: “Ele fará a volta no quarteirão e passará aqui novamente para me buscar! Podem ir andando, que eu espero.”, eles respondem “Nina, o Henry não irá voltar! Ele foi para o Leblon! Vamos conosco.”. Incrédula, ela repete o mesmo diálogo duas, três vezes... e eles resolvem ficar junto até ela se convencer que precisava ir com eles.

Na época, pesados, toscos e caros, os celulares não eram de uso corriqueiro; nem mesmo todos o possuíam. A história do pequeno abandono se transforma em mais um grande mote para beberem mais alguns chopes na Clipper. Enquanto riam da constatação que os recentes amigos já se conheciam mais que os próprios primos carnais, lembram que ainda estavam com fome e alguém tem a brilhante ideia de visitar outra amiga que morava no Leblon. “Vamos para casa da Sissi e comemos algo por lá!”.

Sissi vê o seu apartamento ser invadido por um grupo de bêbados e atônita tenta entender o que estava acontecendo. Big Charles, seu namorado, havia atendido o interfone e liberado a subida dos intrépidos amigos. Até aquele momento nenhum deles conhecia o seu namorado. Henry entra no apartamento gritando sem parar “Sissi! Sissi! Estamos morrendo de fome! Precisamos de comida!”. Mal percebem e assimilam que há outro casal visitante em seu apartamento.

Após as devidas apresentações, Sissi tenta em vão esclarecer que estavam numa noite de jantar romântico de casais. Entretanto, Vina, Henry e Little Anne já completamente bêbados não possuem mais nenhuma cognição e pudor e seguem gritando “Sissi! Sissi! Estamos com fome!”. O iluminado, espirituoso e acolhedor Big Charles resolve pedir pizza para todos e por alguns momentos o sonhado jantar romântico da Sissi se transforma em uma grande e barulhenta noite da pizza.

Não fazem o registro fotográfico deste momento do dia, mas ele fica cravado na memória de todos. Uma noite onde o inesperado, a surpresa, o inequívoco desconforto e incômodo se transformam em mais uma razão para fortalecer os laços de amizade entre grandes amigos.

Após alimentados, recobram alguns neurônios e concluem que deveriam deixar a Sissi, Big Charles e outro casal seguirem com a sua noite romântica. Até hoje, o Henry tem dúvidas se a saída deles provocou um enorme alívio, um retorno ao jantar romântico ou apenas um silêncio ensurdecedor. Aquele silêncio que escutamos quando acordamos durante a madrugada.

Resolvem passar num posto de gasolina para comprar... mais cervejas... e seguem para o apartamento do Henry. A Nina exausta, resolve ir dormir. Após resenhas e risadas sobre o dia, a Little Anne se entrega aos cochilos esparramada no sofá. Henry e Vina seguem na competição em frente ao aparelho de som, tentando escolher alguma música e compartilhando de um lado para o outro uma latinha de cerveja: “É a sua vez!”, “Não! É a sua vez!”, “É a sua!”... Param, se entreolham e por volta de 1:00 da madrugada, concluem ao mesmo tempo: “Não desce mais!”

Atenção: Está é uma história que guarda hábitos e costumes de outra época, logo: se beber, não dirija!

Dedico este conto a Nina que, com o seu sonho de pular de asa delta, me propiciou um dos dias mais loucos da vida e aos meus grandes amigos Little Anne, Vina, Sissi e Big Charles. Vocês são fantásticos! Amo vocês!