Com uma história longa, e com mais anos dos que os que possamos viver.
Rabiscos que o corpo, em tempos, se habituou a desenhar, lentamente e com intenção.
Letras que juntas se convertem em mensagens de aviso, alerta e urgência.
Ideias soltas e receitas mal estudadas.
Com dedicações de amor e mensagens de saudade.
Rabiscos de histórias que hoje são clássicos.
Letras que juntas contam uma vida, e perfazem uma obra de arte.
Refiro-me a fragmentos visuais que, reunidos, se tornavam palavras, ideias, mundos.
Não, não se trata de imagens grandiosas nem de vistosas obras de arte expostas em galerias.
Também não se trata de códigos informáticos, nem de caracteres digitais obedientes a comandos binários.
Falo de algo mais íntimo, mais orgânico. Falo da arte de escrever à mão, um gesto simples, e atualmente quase esquecido.
Escrever era um ato de entrega.
Um ritual em que o papel era quase pele e a caneta, uma extensão do nosso pensamento mais cru.
Não era premir uma tecla, nem assistir ao surgimento automático de uma letra perfeita, fria, impessoal, emitida por um ecrã retroiluminado.
Era, antes, desenhar palavras antes mesmo de lhes dar significado.
Criar formas com as mãos, transformar o silêncio em linhas. Era corpo. Era tempo. Era humano.
Houve um tempo em que escrever exigia esforço.
Não só mental, mas físico.
A mão doía, o pulso cansava, os dedos manchavam-se de tinta. Mas havia ali verdade. Havia ali alma.
Fernando Lemos lembrava-nos disso, que o mundo se escreve à mão. E havia nisso uma sabedoria perdida, escrever não era apenas comunicar, era também marcar presença, deixar rasto. Riscar o branco. Perfurar o silêncio.
Hoje, tudo mudou.
A escrita tornou-se linear, funcional, automática.
Perdemos a hesitação que dava carácter, a imperfeição que revelava humanidade. Escrevemos com os dedos sim, mas agora num ecrã liso e brilhante, onde os erros são corrigidos antes mesmo de os vermos.
Substituímos frases por emojis, silêncios por likes, e usamos o ponto final quase como uma ameaça passivo-agressiva. Há muito que o gesto de escrever se transformou num simples ato mecânico. Algo a cumprir, não a viver.
Lembro-me da sensação das primeiras semanas de aulas, depois das férias de verão. A mão enferrujada, trémula, a recuperar lentamente o traço. As letras saíam tortas, mas ganhavam forma. E havia ali uma beleza inconsciente, a beleza do esforço.
Hoje, as crianças aprendem a digitar antes de aprenderem a desenhar a sua própria assinatura. As salas de aula modernas trocam cadernos por tablets, lápis por stylus, caligrafia por fontes pré-definidas.
A escrita, essa moda antiga, tornou-se... conceptual. Um resquício do passado.
A caneta é agora um objeto vintage, decorativo, ao lado da máquina de costura da avó ou do rádio a pilhas. Um símbolo de nostalgia.
Há quem nunca tenha escrito uma carta. Há quem nunca tenha sentido o prazer de comprar um caderno novo, ou o cheiro da tinta num papel rugoso. Como podemos explicar essa arte a alguém que nunca sentiu a mão doer de tanto escrever? Ou que nunca esperou, pacientemente, que a tinta e posteriormente um corretor secasse?
Talvez a escrita tenha começado a morrer no instante em que o corretor automático começou a completar as frases por nós. Ele escreve melhor sim! Sem erros. Sem embargos. Mas também sem alma, sem hesitações, sem aquela falha que nos tornava humanos.
As frases tornaram-se curtas.
Tal como exprimo agora em sentimentos apontados numa folha A4 digital, e em teclas bonitas e lineares.
Os sentimentos, comprimidos em abreviaturas e acrónimos. As exclamações, ridicularizadas. As cartas, substituídas por mensagens efémeras.
Ainda me lembro quando “letra à médico” era uma expressão comum. Um desafio decifrável apenas pelos mais próximos. Havia humor nisso. Havia intimidade. E havia orgulho!
Hoje, os herdeiros dessa arte em extinção limitam-se a digitar a sua memória. Com sorte, guardam-na na nuvem, um céu artificial, sem poesia, onde tudo pode desaparecer com apagões mal explicados.
A caligrafia tornou-se luxo. Um ornamento. Um gesto de resistência estética num mundo obcecado pela eficiência.
Quem resiste? Os artistas, os românticos, os desajustados. Aqueles que ainda acreditam que há beleza numa letra torta, e verdade num erro bem desenhado. Mas também a orgânica de premir uma tecla, desenvolve uma visão que nem todos conseguem absorver.
Das teclas, James Cook cria arte, da sua escrita cria uma história de imagens. Mas sem as desenhar.
Vê nas letras não só palavras.
Transforma símbolos em ruas, montes, cidades inteiras.
Dos caracteres cria paisagens, não as desenha, mas das teclas faz arte.
Arte pouco compreendida. Quase marginal. Num tempo em que a velocidade impera, onde o mais importante é terminar rapidamente, a lentidão da escrita manual é vista como atraso. Mas talvez seja precisamente essa lentidão que nos devolve alguma humanidade. Talvez escrever à mão seja, hoje, um ato de resistência contra a desumanização digital.
Afinal, há coisas que só a mão sabe dizer.