Com Deus por testemunha, com Deus por testemunha, os ianques não vão me vencer. Vou superar isso e, quando acabar, jamais sentirei fome novamente. Nunca, nem nenhum dos meus. Mesmo que tenha de roubar ou matar, que Deus seja minha testemunha, jamais sentirei fome novamente.
Umas das mais famosas falas do livro, imortalizada na atuação de Vivien Leight, mostram o porque de E o Vento Levou... ser considerado uma das maiores obras primas da literatura mundial, mesmo envolto em diversas controvérsias.
A obra escrita por Margaret Mitchell em 1936, é dividida em 5 partes e se passa nos Estados Unidos da América nos períodos de pré-guerra civil (parte 1), guerra civil (parte 2), pós-guerra civil e pré reconstrução (parte 3), reconstrução (parte 4) e pós reconstrução (parte 5) entre os anos de 1860 até meados de 1872/73. A protagonista do livro é Scarlet O’hara, filha mais velha de uma família aristocrática de fazendeiros escravagistas que vê seu mundo ruir ao descobrir que o homem que amava iria se casar com outra. Somado a isso, ocorre o começo da guerra civil no país e com isso, o fim da aristocracia sulista, ou como ficaram conhecidos os “confederados”.
A história tem como ponto central Scarlet e o seu crescimento durante a obra por conta de todos os acontecimentos que irão ocorrer em sua vida. O livro começa ao apresentar uma jovem Scarlet de 16 anos e termina com uma Scarlet já adulta em seus 28 anos. Durante a história vemos o que a guerra fez com ela, sua família, seus amigos e os confederados e é aqui jaz a primeira das polêmicas que envolvem o livro.
A Causa Perdida
Muitos estudiosos, principalmente os estadunidenses, são categóricos em afirmar que o livro não é uma representação da história, faz revisionismo histórico, é racista em seu conteúdo e promove a supremacia branca, além de glorificar o mito da “Causa Perdida” que perdurou (e ainda perdura) nos EUA sobre as motivações dos confederados na guerra civil. Contudo, em nenhum momento do livro ocorrem nenhuma dessas ações da qual ele é acusado, muito pelo contrário.
Estudiosos, principalmente estrangeiros, ao estudarem e analisarem a obra, comentam que essas críticas a respeito da “inveracidade” da história se deve ao fato de que, no livro, o exército da União (os ianques) não é mostrado sob um prisma heroico. Além disso, ele também mostra que a guerra civil começou por outros motivos e de que a abolição dos escravos foi apenas uma consequência e uma “desculpa” usada pelo norte para o começo da guerra e principalmente por expor os crimes de guerra cometidos por ambos os lados1.
Scarlet é uma personagem fútil, egoísta, mimada e ignorante, que não liga para nada que não sejam festas, diversão e seu amor por Ashley Wilkes, contudo, no decorrer da história, vemos que Scarlet constantemente pensa em como “A Causa” é uma grande de uma bobagem, em como a guerra está acabando com tudo o que ela mais ama e começa a questionar não apenas os ensinamentos de sua mãe, principalmente após ela vir a falecer na história, mas também as próprias regras e ensinamentos dos confederados.
Sua icônica fala no começo do texto, se dá ao final da segunda parte do livro após Scarlet, fugir de uma cidade de Atlanta incendiada com seu filho pequeno Wade, sua escrava Prissy, Melanie (que era esposa de Ashley) e seu filho recém-nascido, em uma carroça caindo aos pedaços conduzida por um cavalo quase morto os dois roubados por Rhett Butler. Ao voltar para a fazenda Tara, descobre que todos os escravos haviam fugido, com exceção de três: Mammy, praticamente sua segunda mãe, Dilcey, uma escrava metade índia e mãe de Prissy, e Pork, mordomo do pai de Scarlet e pai de Prissy. Além de ver Tara destruída e incendiada pelo exército da União, assim como as casas de seus vizinhos, Scarlet descobre que sua mãe havia morrido de tifo no dia anterior, que suas irmãs estavam de cama a beira da morte com a mesma doença e seu pai, devido ao choque, estava ficando demente.
E é esse o ponto de virada na história onde Scarlet decide que não vai mais ficar pensando no que foi perdido e iria trabalhar para reconstruir tudo que lhe havia sido tirado. É aqui também que começa a se delinear quem evoluí e continua vivendo no novo sul (Scarlet e até certo ponto da obra, Rhett) e quem fica estagnado e perece junto com o antigo sul (Melanie, os amigos e vizinhos de Scarlet, Ashley e praticamente todos os personagens do livro).
Enquanto Scarlet mente, rouba, mata, trapaceia, seduz e faz tudo o que for preciso para sobreviver e alimentar sua família (o que incluí Prissy, Pork, Dilcey e Mammy) e Rhett também faz o mesmo (o personagem será mais detalhado para frente), os outros personagens preferem ficar rememorando o passado, vivendo sob os antigos e arcaicos costumes e não evoluindo para sobreviver, incapazes de aceitar que sua vida antiga havia acabado.
Esse é um dos motivos que desmente a narrativa dos estudiosos estadunidenses sobre o revisionismo histórico da obra. O livro, sob o ponto de vista de Scarlet, a todo momento faz crítica a essa adoração à “Causa Perdida”, mostra os confederados sob um prisma de “orgulho burro e ignorante” onde eles glorificam os soldados e a bandeira confederada, os costumes arcaicos e os preconceitos ultrapassados, sem em nenhum momento querer aceitar que o mundo deles havia caído e que uma nova ordem tinha sido erguida.
Enquanto Scarlet, sofrendo de estresse pós-traumático e de uma pressão gigantesca ao se tornar a chefe da família com apenas 19 anos, não se incomoda de fingir sorrisos para os ianques, cobrar dívidas de amigos e conhecidos sem o menor pudor, manipular e mentir, tudo para poder ter dinheiro para que ela e sua família não passem fome novamente, os outros personagens preferem viver em meio à pobreza e com o orgulho confederado, sem aceitar que a sociedade aristocrática escravagista havia acabado.
O racismo
O que nos leva ao segundo ponto de controvérsia do livro, o fato dele ser “racista”. Muitas dessas acusações se devem por conta da adaptação cinematográfica do livro, contudo, a própria autora do livro não teve nenhum envolvimento com o roteiro do filme e nem com o filme em si. Outro ponto a se levar em conta é que o livro se passa no estado da Georgia em um período histórico em que a sociedade via o escravagismo como algo “natural”. Seria então completamente irreal e até mesmo anacrônico os personagens não apresentarem falas racistas, ações racistas e pensamentos racistas nesse contexto.
Outra crítica que fazem ao livro, se dá por ele ter “romantizado” e amenizado a seriedade das ações da KKK, mas isso também acaba por não ser verdade. Novamente, tudo se explica a partir da época em que o livro foi escrito e o contexto histórico dos EUA no ano de 1936, em meio a uma bruta segregação racial que ocorria em todo o país, com milhares de adeptos da Ku Kux Klan.
A KKK teve 3 “encarnações”, a primeira durante o período da “Reconstrução” após a guerra civil, a segunda entre os anos de 1915 até 1944 - quando o número de adeptos chegava à casa dos milhões - e a terceira que aconteceu no pós segunda guerra e perpetua até os dias de hoje, mas sem a mesma força da segunda encarnação. O livro trata da primeira encarnação que, até mesmo hoje, é envolta de mistérios e não se tem certeza ao certo de quantos membros ela possuía.
Com exceção de Rhett, todos os homens sulistas no livro faziam parte da KKK e as mulheres sulistam também sabiam, com exceção de Scarlet que era terminantemente contra, por achar que “a Klan mais prejudica do que ajuda e vai acabar destruindo tudo o que eu lutei para reconstruir”. E por esse motivo, nenhuma das sulistas havia contado nada a Scarlet, por ela “não compreender pelo que os seus homens estavam lutando” e chegando até ao ponto de acusar Scarlet de ter matado seu segundo marido Frank e outros homens da Klan que tinham “ido defendê-la” quando ela sofreu uma tentativa de estupro.
Como se pode notar, Scarlet é vista como “amoral e desumanizada” pela sociedade sulista por ser diferente dos demais, por querer seguir em frente e esquecer o que se passou e por se tornar implacável para defender seus interesses e proteger sua família. Esse acaba por ser, na realidade, o maior contraponto e a prova da crítica de Margaret Mitchell, à essa adoração sem limites aos confederados, à “Causa” e “aos bons tempos”, à existência da KKK e aos “motivos” levados a criação da mesma.
A crítica ao racismo presente na obra se baseia na “estereotipação” dos personagens negros (que lembrando novamente, acontece no filme e não no livro) e ao mito do “negro escravo agradecido”, contudo, isso não ocorre na história, na verdade isso quase nem é tocado no livro. Os únicos personagens negros relevantes no livro são Mammy, Pork, Dilcey, Prissy, Big Sam e Tio Peter, todos os outros mal tem relevância alguma no livro.
Mammy tem uma devoção à mãe de Scarlet, Ellen, e ama Scarlet como se fosse sua própria filha (e Scarlet a vê praticamente como uma segunda mãe e figura de autoridade). Pork é o braço direito do pai de Scarlet, George, e é considerado o mordomo da casa dos O’hara. Ele tem devoção por George, que o ganhou em um jogo de poker de seu antigo dono que abusava dele. Dilcey (que sempre fala com orgulho de suas origens indígenas), por sua vez,diz que tem gratidão aos O’hara por eles terem comprado ela e Prissy para que pudessem ficar junto de Pork. Big Sam é um negro de quase 2 metros que trabalhava no campo de Tara e depois, durante a restauração, foi resgatado por Scarlet quando os ianques foram atrás dele por ter matado um homem por acidente. Por fim, Tio Peter é o mordomo da casa de tia Pittypat, tia do primeiro marido de Scarlet, Charles, e de Melanie. Ele é quem comanda a casa e é a figura de autoridade.
Por Scarlet ser uma “ovelha negra”, seu pai ser um estrangeiro esquentado irlandês e sua mãe ser descendente de franceses e extremamente católica, eles são mostrados no livro como “escravocratas esquisitos”, pois George nunca castigava ou chicoteava nenhum negro (e no livro é deixado claro que a única vez que ele foi obrigado a fazer isso foi a contragosto) e Ellen ajudava quem quer que fosse, os negros do campo, os negros da casa e até mesmo os “brancos ordinários”. Esse aliás é um dos pontos interessantes que o livro traz, sobre o sistema de castas que existia na época entre brancos aristocratas, brancos pobres, negros de casa e negros do campo.
Mammy, Pork e Tio Peter eram negros de casa e se orgulhavam disso, pois estavam melhores até do que os “brancos ordinários” que eram pobres e não tinham o que vestir e dos negros do campo que “não tinham outras habilidades”. Durante a terceira parte, em que Scarlet tem que trabalhar nos campos de algodão e está em meio a fome e a pobreza, a autora faz um paralelo interessante ao mostrar que até mesmo os personagens negros do sul tinham aderido aos costumes e as castas, pois Mammy reclama e se recusa terminantemente a trabalhar no campo, assim como Pork que chora e diz que é um mordomo e não apenas “um negro do campo”, não apenas eles, mas as próprias irmãs de Scarlet se recusam a ajudar a trabalhar no campo por “serem O’haras”. Dilcey é a única que concorda em ajudar Scarlet sem reclamar, por conta de suas origens indígenas (a personagem fala no livro que os índios sempre demonstram a sua gratidão).
Então como se pode notar, o que a autora mostra na história não são personagens negros estereotipados, mas sim personagens negros inseridos em um sistema escravagista e de castas em que eles absorveram a cultura confederada e alguns até se orgulhavam disso, como é mostrado com o personagem de Tio Peter, que briga com Scarlet por não defendê-lo quando foi ofendido por esposas ianques de oficiais do exército, chegando ao ponto de acusar Scarlet de ser culpada por se relacionar com “os ianques e os brancos ordinários”. Os personagens no livro possuem tantas camadas que chega a ser ofensivo vê-los e tratá-los de forma tão simplista. Scarlet, Rhett Butler, Melanie, Mammy e Ashley são provavelmente os personagens mais humanos da obra, principalmente Scarlet.
Como dito anteriormente, Ashley e Melanie são “o antigo sul” que acabou sendo destruído após a guerra, contudo os dois acabam por ser um paralelo por si próprio. Enquanto Ashley se mostra um personagem fraco e covarde, que mesmo não concordando com a guerra, com a KKK e com outras coisas, participa de tudo se escondendo atrás do estandarte de “honra e orgulho”, Melanie é extremamente devota aos confederados, aos costumes e as outras coisas, mas é uma das únicas personagens, junto com Mammy e Will, que compreendem Scarlet completamente e apesar de ser tão devota aos confederados, Melanie ama e é tão leal a Scarlet a ponto de não condená-la quando ela assassina um soldado ianque ou quando ela contrata detentos arrendados para trabalhar aos invés de negros livres.
Este aliás é o principal ponto em que se mostram as diferenças entre Ashley e Melanie, mesmo sendo representações do antigo sul. Ashley e a cidade criticam e condenam Scarlet por se aproveitar de detentos para trabalhar quase de graça, mas quando Scarlet contrapõe dizendo que eles não viam problema de terem escravos negros, Ashley responde hipocritamente que “ali não havia problema, pois os escravos eram “felizes” e essa é mais uma rachadura que surge no amor de Scarlet por Ashley, ao começar a se dar conta do quão fraco ele é.
Já com Melanie acontece o caminho oposto. Scarlet passa a maior parte do livro a odiando e a achando uma tola, principalmente pelo fato dela ser casada com Ashley, o amor de Scarlet. Contudo, com o passar da história, Scarlet começa a ter sentimentos controversos entre admiração (e depois até amor) por Melanie mesmo com seu ódio por ela ter “roubado” Ashley. Além disso, Melanie compreende que as ações de Scarlet, mesmo contrárias às crenças confederadas, são feitas por um motivo justo e sempre as aceita, mesmo quando ela é terminantemente contra. O que demonstra quão forte é o caráter de Melanie e que mesmo tendo que fazer coisas contrárias às suas crenças, nunca perde a sua essência.
A complexidade de Scarlet
Falando em Scarlet, temos provavelmente a personagem mais complexa do livro e até mesmo da literatura mundial. Como já dito anteriormente, Scarlet é mimada, egoísta, fútil e ignorante, todas as características que fariam qualquer leitor odiá-la, entretanto, a personagem tem tantas camadas e é tão complexa que não é possível classificá-la como boa ou ruim.
Enquanto na primeira parte temos uma personagem insuportável e irritante, logo no final dessa parte e na segunda parte temos uma Scarlet viúva de Charles (irmão de Melanie), com um filho, e sendo obrigada a seguir os costumes sulistas absurdos de viuvez, e praticamente caindo em depressão. Seu casamento foi feito não por amor, mas por despeito a Ashley ter anunciado seu casamento com Melanie. Scarlet paga o preço de sua insensatez durante toda a segunda parte do livro, ao ser obrigada a morar com Melanie e tia Pittypat na casa de Charles em Atlanta, ter que ajudar no hospital dos confederados e ter sua vida decretada como acabada aos 18 anos, apenas por ser viúva de um homem que nunca amou.
É interessante notar o quanto Scarlet cresce, sofre as consequências de seus atos impensados, mas continua sendo uma personagem extremamente forte e resiliente. Um dos exemplos é o fato de, no final da segunda parte, Scarlet fica em meio a uma Atlanta sitiada pelos ianques e em chamas por causa da gravidez de risco de Melanie, da qual ela também é obrigada a fazer o parto praticamente sozinha. É a única vez no livro inteiro em que Scarlet castiga uma negra lhe dando um tapa na cara, pois Prissy mentiu ao dizer que sabia fazer o parto e isso colocou a vida de Melanie em risco.
Outro exemplo, é quando Scarlet chega a uma Tara arrasada pela guerra, carregando Prissy, Melanie a beira da morte, seu bebê recém-nascido e Wade. Tara estava devastada, todos passando fome, suas irmãs estavam na cama com tifo, sua mãe havia acabado de falecer, seu pai começou a ficar demente com o choque e Mammy, Pork e Dilcey estavam ávidos para alguém assumir a chefia, pois não sabiam o que fazer e Scarlet engole todo seu cansaço e medo para tentar organizar a destruição causada pelo exército ianque.
Talvez o maior exemplo da força de Scarlet se dê logo após sua chegada em Tara, quando decide andar pelas fazendas vizinhas à procura de comida para alimentar todos, mas ao não conseguir achar quase nada e ao ver a destruição de todas as fazendas vizinhas, ela cai no chão, exausta, quase desmaiando de fome e se lembrando de como as coisas eram e como eles haviam desperdiçado comida antes da guerra. Então, Scarlet encontra forças para se levantar e diz a famosa frase no começo desse texto, sendo o ponto de virada da personagem na história. A jovem aristocrática, feminina e educada Scarlet havia sido deixada para trás e morrido para dar lugar a uma Scarlet adulta, implacável e que não deixaria mais ninguém de sua família passar fome. Essa, aliás, é uma das ações que faz Scarlet ser tão complexa.
Complexa pois Scarlet odiava suas duas irmãs mais novas, principalmente Suellen (a do meio), mas Scarlet faria de tudo para que elas pudessem ter comida na mesa novamente. Scarlet também odiava Melanie, mas faria de tudo para que ela e o bebê se recuperassem, mesmo que fosse apenas por conta de sua promessa para Ashley.
Interessante também era sua relação com seu filho Wade (e futuramente com sua filha Ella e Bonnie). Alguns estudiosos argumentam que Scarlet sofria de depressão pós parto e misturada com os efeitos do estresse pós-traumático, a fome e a ansiedade fizeram Scarlet se tornar tão ríspida e distante de seus filhos. Contudo, é interessante notar que, mesmo que a personagem diga várias vezes no livro que “não gosta de crianças e nunca quis ter filhos” sua preocupação sempre é com o bem-estar deles, mesmo que em sua cabeça obtusa ela associe isso a bens materiais e dinheiro.
Scarlet era tão desesperada em ter dinheiro para que ninguém nunca mais passasse necessidade que no final da terceira parte, quando Tara está para ser hipotecada e comprada a um preço baixo, ela engole seu orgulho e vai até Atlanta se oferecer a Rhett Butler como sua amante, contanto que ele lhe emprestasse o dinheiro para pagar os impostos da fazenda. Quando ele se recusa e caçoa dela, Scarlet resolve roubar o noivo de sua irmã Suellen, que havia conseguido uma pequena fortuna, para que pudesse pagar os impostos de Tara. Tanto Mammy como Will se dão conta de que Scarlet roubou Frank de sua irmã, pois Suellen não ajudaria a pagar os impostos de Tara caso tivesse se casado com ele e deixaria a família na miséria.
A quarta parte é a que mostra Scarlet em sua versão mais maquiavélica e obstinada, onde ela contraria todos os ensinamentos católicos de sua mãe, vira as costas para o “orgulho confederado” dos outros personagens, mente, manipula, finge se dar bem com os ianques, tudo para que ela tenha dinheiro o suficiente para que ninguém mais precisasse passar fome novamente. Essa acaba sendo uma das partes mais brutais socialmente para Scarlet, pois suas únicas aliadas são Melanie e Mammy, que compreendem o porquê de Scarlet estar tendo essas atitudes.
Na quinta parte da obra, quando Scarlet fica rica ao se casar com Rhett, a primeira coisa que ela faz é comprar presente para todos, principalmente para os “filhos que ela não queria ter”, além de presentes para “as irmãs que ela odeia” e até mesmo para Melanie. Aliás, a quinta parte é a que mais mostra como Scarlet mudou e se afastou de tudo o que o “sul antigo” representava e estava de braços abertos para abraçar o “novo sul”, tudo em prol de sua família. Essa parte também é a queda do personagem Rhett Butler, vivido no cinema por Clark Gable.
A relação com Rhett
Se Scarlet é a personagem mais complexa do livro, Rhett Butler é um dos personagens mais misteriosos. Ele é apresentado na primeira parte do livro como uma ovelha negra, renegado da família e uma escória. O personagem durante a maior parte do livro não se importa de ser escorraçado e maldito, sempre fazendo troça dos costumes sulistas, do orgulho confederado e sem a mínima vergonha de se aproveitar da guerra para enriquecer.
Durante o livro, suas atitudes em relação a Scarlet são extremamente ambíguas e por muitas vezes cruéis beirando até a sociopatia. Como por exemplo, no final da segunda parte, Rhett rouba uma carroça e um cavalo para ajudar Scarlet a fugir de Atlanta, mas logo em seguida a abandona sozinha para se alistar na guerra. Outro exemplo é o fato de, quando preso durante a terceira parte, deixou Scarlet se humilhar para que ele lhe emprestasse dinheiro e sabendo que iria recusar, para logo após sua saída da prisão resolver emprestar dinheiro para que Scarlet comprasse uma serraria, mas o maior exemplo acontece durante a quinta parte do livro, quando ele e Scarlet se casam.
Durante todo livro Scarlet nutre um amor quase obsessivo em relação a Ashley e Rhett está muito ciente disso, a ponto de diversas vezes durante o livro Rhett zombar do amor de Scarlet por Ashley. Além disso, ele constantemente zomba dos defeitos de Scarlet, incentiva seu comportamento mais impulsivo e egoísta, diz diversas vezes que não a ama apenas a deseja, mas ao mesmo tempo cuida dela, de seus filhos e de sua família. Quando ele lhe propõe casamento no final da quarta parte, Scarlet aceita se casar com ele e durante a conversa diz que não o ama, mas gosta dele, o que deixa Rhett decepcionado, mas ele disfarça.
Contudo, após o casamento e de Scarlet dar à luz a sua terceira filha Bonnie (e em consequência, dizer que queria dormir em quartos separados, pois não queria mais ter filhos), Rhett Butler sofre uma transformação de 180º, ficando completamente obcecado em mimar sua filha, a ponto de dar as costas aos seus amigos ianques e para tentar voltar as graças da “velha guarda” sulista, em pintar Scarlet como uma mãe horrível, acreditar no rumor de que Scarlet o estava traindo com Ashley, estuprá-la, engravidá-la e, em uma discussão, empurrá-la fazendo-a cair da escada e sofrer um aborto. Em meio a isso, Bonnie acaba morrendo, fazendo Rhett ficar mais alcoólatra ainda, pois ele já começara a beber desde que Scarlet pediu para dormirem em quartos separados e somado a isso insinuava dormir com outras mulheres, dizendo que não se importava de não dormir com Scarlet.
O personagem cai em uma espiral de autodestruição tão completa que, quando Scarlet se dá conta de que o ama e não a Ashley, Rhett decide ir embora e diz a famosa frase: “Minha querida, eu não dou a mínima”.
Muitos estudiosos apontam que o personagem de Rhett Butler foi baseado no primeiro marido de Margaret Mitchell e que ele não era para ser um personagem romântico como pintado no filme, mas sim um personagem narcisista e abusivo. Alguns também argumentam que tanto ele quanto Ashley amavam uma forma idealizada de Scarlet. A relação de Rhett e Scarlet se parece muito com o livro Frankstein, onde Rhett é o doutor Frankstein e Scarlet é a sua criação: quando ele perde o controle sobre ela, decide abdicar da responsabilidade sobre o seu erro.
Rhett incentivou os piores lados de Scarlet e se divertia com isso até quando fosse conveniente para ele. Após Scarlet se tornar exatamente do jeito que ele queria e ele perder o controle, a graça passou e, ao se dar conta de que nunca conseguiria o amor de Scarlet após o nascimento de sua filha, ele decide destruir Scarlet moralmente e age como se ela fosse a única culpada na ruína do casamento entre eles.
E por tudo que já foi falado, ainda a tanta coisa mais a ser falada sobre essa excelente obra, mas que em um mero texto isso não é possível. Ademais, isso só comprova a grandiosidade da obra de Margaret Mitchell.
Nota
1 As informações deste parágrafo foram pesquisadas em diversas fontes, assim como as informações sobre a autora e sobre a guerra civil. O texto não está fazendo apoio ao mito da Causa Perdida ou revisionismo histórico, mas apenas desmistificando certas críticas referentes a obra.