Dos sintomas
A realidade maniqueísta do gosto/não gosto, a versão superficial do porque sim/porque não ou a sua sucedânea preguiçosa do sim/não, mas não sei explicar podem radicar na ingenuidade da crença em ‘magias’ messiânicas, que prometem sucesso inequívoco. Falamos do contexto educativo geral e escolar em particular, que, cedendo a esta tendência, etiqueta redutoramente os jovens como consumidores do processo de fabricação social, remetendo-os para um futuro eventualmente ótimo, mas ao qual se subtrai o bom do presente e o lastro da memória. O imediato, indolor e eficaz, é a receita preconizada por tal atitude.
Resultante da ambiguidade virtuosa e irreversível, própria de todo o humano, da globalização, a cosmorealidade efervesce nas mentes como hipercomplexidade esmagante, geradora do ‘não vale a pena’. Tudo o que é estruturalmente decisor aparece como distante, inalcançável, inalterável. Inevitável nas consequências, ininfluenciável nas causas. A ‘nossa parte’, aquela que competirá ao exercício livre e comprometido da nossa obrigação cidadã, aparece como algo irrelevante para os sujeitos anónimos. Cada um/a de nós. Como tal, torna-(n)os abstencionistas, absentistas, auto-heterodemitidos. Esta epidemia endémica tende a propagar-se numa solidariedade negativa, que pode redundar numa imunidade de grupo contra o novo e diferente, cerrando fileiras no conforto sem confronto do exercício de manutenção do mesmo.
A fé é um conceito em crise, que pode ser chamado para esta discussão. Evidentemente com essa crise atrelada, que a desviou do campo da utopia comprometida, comunitária, para um pragmatismo resultadista de sabor individualista, residualmente tolerador do acrescento de outros, quando aportam capital de eficácia. Ou a fez gasosicidade etérea e privada. Descremos do simples e pequeno, quando o macro é ditadura impositiva. E isso inibe a prática, porque faz depender esta de critérios de sucesso mensurável, segundo prerrogativas mercantis. Quando por aqui se configuram programas, metodologias e objetivos (escolares), o comunitário fica ferido na possibilidade de operacionalização. Sempre que o confundimos com unanimismo, maculamos a sua substância e ele perde capacidade de salgar de sabor a cultura, enquanto pedagogia social de longo alcance e validade duradoura, numa identidade que se conjuga com revisibilidade regular inteligente e participada.
Pelos caminhos
Sem vínculo(s), podemos questionar se a pessoa se cumpre na densidade de sentido antropológico pleno. A resposta não pode ser positiva. Assim sendo, precisamos de percorrer (novos) caminhos de militância significativa, que aproveite o capital de indignação e crítica presente nas gerações mais jovens. Primeiramente, de o provocar, se ele se apresentar em estado de letargia. Dada a sua permeabilidade e exposição à infinidade comunicacional, a adesão militante dos jovens irá seguramente acabar por acontecer, sem discernimento crítico, dada a sua necessidade antropológica constitutiva. Sem alguns inputs ficarão mais à mercê de ‘arrebanhamentos’ feitos de eticamente duvidosas subtilezas de agenda. Depois deste dinamismo provocador, é papel dos educadores-pedagogos incorporarem enraizadamente a convicção de que os mais novos são capazes do grandioso, não necessariamente grande no imediato quantificável. Notem-se algumas militâncias potencialmente mobilizadoras.
Na causa ecológica, (desgraçadamente) os efeitos devastadores crescem na proporção dos negacionismos. Lidamos, como sociedade, aparentemente de modo tranquilo com a narrativa da morte anunciada do ecossistema que nos sustenta. E aí estão os jovens, ‘já’ como educadores dos crescidos. Além da militância ecológica, a pobreza, a fome, a guerra e a(s) violência(s) de género(s) (ainda) constituem temas/causas geradores de indignação, sobretudo se se conseguir associar reflexão e exposição à realidade, diagnóstico e compromisso, distância crítica e proximidade afetiva existencial. A tão problematizada cidadania tem também aqui campo privilegiado, nomeadamente começando por desformatar a sala de aula como espaço dogmático e absoluto de ensino-aprendizagem e os conteúdos como doutrina facilitadora absoluta, para dar lugar à negociação que conduza a aprendizagens essenciais e à aquisição de competências.
Nessa linha, as causas estarão recheadas de conceitos, que atestam fundamentações, predominâncias, intuição de consequências, mas não são apenas categorias sociológicas, vertendo-se, nos casos em apreço, em pobres concretos, pessoas reais que não comem ou estão sujeitas a situações de guerra e outras formas de violência.
O compromisso com a proximidade é uma outra possibilidade de caminho a percorrer, agregando, a montante desse vínculo empenhado, a crença de que os ‘pães se podem (efetivamente) multiplicar’. Agora e aqui. Importa renegar a tese dogmática da inevitabilidade da pobreza, da demissão que remete para a letra de decretos promulgados por ‘entidades sem rosto’ a transformação social, da circunscrição a uma pequenez orgulhosamente só de fronteiras cerradas, autodenominada incapaz da mudança, esmagada por uma conjuntura amplamente maior e mais poderosa. Se, por um lado, num quadro globalizado, ninguém resolve nenhum problema estrutural de modo isolado, por outro, é também possível (e urgente) globalizar mecanismos de emancipação cultural, a partir de comportamentos localizados. E aí os jovens podem ser protagonistas, porque esta sensibilidade efervesce dentro de si, na espera de ser provocada e desvelada.
Importa que, para tal, cresçamos nas pertenças aos espaços e às dinâmicas que os fazem, para que, sempre que estes/as estiverem ‘em causa’, sejamos nós – os sujeitos – os perguntadores e o conteúdo do que perguntamos. Dessa forma, a transformação criativa impulsiona-se desde cada um e verte-se em fermento social, como a escola como palco de atores-alunos protagonistas.
Uma atitude de fundo, feita caminho e tentativa, podia radicar na consciência de que apenas há colheita porque houve (antes) sementeira. Há muito que não foi feito por nós, de que somos apenas fruidores e, assim sendo, a questão incontornável seria ‘o que queremos nós semear?’. Sem preocupação obsessiva com a colheita imediata e eficaz. Da parte dos adultos, teremos de aprender a lidar com a (im)popularidade, o (in)reconhecimento, a (in)eficácia, cultivando o ensaio, a sinodalidade, a criatividade. Isto contra a repetição preguiçosa, o dogmatismo curricular, a segurança do experimentado. Uma vez mais, a escola desburocratizada e desformatada a ser tubo de ensaio social.
Às descobertas
Precisamos encetar processos de descoberta dos bastidores, não para os ‘evangelizar’ ao jeito das cruzadas, mas para aprender. A avaliação de uma realidade social (tomemos aqui a escola e a pequena comunidade como exemplos) pode privilegiar as predominâncias (positivas ou negativas), mas também centrar-se nos nichos de positividade que sempre são remetidos para as antecâmaras dos palcos. Não são metodologias excludentes ou alternativas. Complementam-se. Mas ali, nos ‘bastidores’ habitam agentes interessantes, muitos sem voz nem espaço nos centros.
Temos de abdicar da arrogância do ‘pretenso’ centro onde (supostamente) nos encontramos e onde queremos que todos venham. (Já que queiramos que estejam demoradamente é mais duvidoso!). Ficamos demasiado confortáveis na divulgação tradicional(ista) dos nossos programas de ‘último grito da moda pedagógica’, sem escutarmos uma multidão anónima que habita os bastidores destes processos e rotulamos de ‘surda’ à qualidade das nossas propostas. Diabolizar uma cultura – a nossa! -, como se ela incorporasse todos os males, sem o simétrico ato de fé de que nela estão também todos os caminhos de transformação, é uma leitura desonesta. E como esta mudança não pode advir de uma importação interplanetária (por agora!), e como ‘o mesmo’, o do ‘mesmo modo’ e o ‘com os mesmos’ parece não resultar, emerge como inevitabilidade inteligente modificar algo nos agentes, já que os destinatários não são escolhíveis.
Temos também de descobrir os processos, prévios aos resultados. A sua qualidade, consistência e beleza. Sim, além da ecologia, a beleza, a estética, são ‘causa’ mobilizadora das gerações mais jovens. ‘Cultivar o gosto’ é uma metodologia urgente, trabalho lento e artesanal, que não pactua pacificamente com o quadriculado do ‘excel’ e a aferição quantitativa do resultado. A desconfiança nos processos mina a sua operacionalização, antecipa o claudicar dos resultados, mas, sobretudo, contribui para que não se dê tempo aos projetos e se faça uma coisa e o seu contrário ao sabor das conveniências do momento. E dos protagonistas mais extrovertidos, contorcionistas ou obedientes. Com empobrecimento do todo.
A descoberta e a construção de ‘eutopoi’, lugares de felicidade boa e consistente é outro caminho de discernimento que importa fazer. Ceder ao facilitismo confortável não educa. Mas também não podemos viver à custa de lugares educativos (tidos) como penosos, torturantes, aprisionantes. A escola ser (vista como) isto, destrói a sua identidade e inviabiliza o seu futuro. E é fruto de mentalidades culturais. Logo, cada vez que nos centramos na discussão das estruturas físicas, talvez não estejamos a acertar nos alvos que interessam.
Sem ‘mandar fora o menino com a água do banho’, virar as dinâmicas do avesso, e trazer os ‘bastidores’ para o ‘palco’ pode ser uma metodologia descobridora das vitalidades que dão carne ao esqueleto das decisões e que, não raro, são obscurecidas em favor deste.