A arte seja qual for tem o poder de transformar a dor ou qualquer emoção em algo extraordinário, o engraçado vira comédia, o drama um romance, a dor em superação e por aí vai, os gêneros sejam quais forem nos contam um pedaço de vida, até a mesmo quando se trata de ficção.
Seja na música, livros, esculturas, pinturas séries, poemas, cinema, a arte é cura. Tem sido assim comigo, trago sempre um pedaço de minhas próprias vivências para a escrita, e com isso digo que depois de um longo período mergulhada em um canto sombrio conhecido como o transtorno generalizado de ansiedade e depressão, aqui estou, acordei. Trazendo minha dor como combustível para este artigo. Mas o que me acordou? O que me fez querer criar algum tipo de narrativa? O cinema.
Primeiro filme que vi esse ano não foi inédito, coloquei como meta rever um filme há muito tempo assistido, quem sabe assim também mergulhar na minha cultura nordestina e na enorme vontade de que conseguisse mais uma vez, voltar a sorrir, o escolhido foi O Auto da Compadecida, motivada a relembrar um clássico brasileiro que ganharia logo mais a continuação. Mas do que se trata o filme? É um ícone do cinema nacional que retrata uma comédia dramática, lançada nos anos 2000, inspirado na peça teatral de 1955 do saudoso Ariano Suassuna.
O enredo acompanha os amigos Chicó e João Grilo, que vivem na cidade de Taperoá, no sertão nordestino, na Paraíba. Chicó, o amigo covarde e mentiroso em contrapartida temos João Grilo, o amigo mentiroso mais que consegue colocar o pão de cada dia através de suas peripécias corriqueiras. Na pequena cidade de Taperoá os dois se envolvem até mesmo com os cangaceiros da região que acaba de fato por resultar na morte de João Grilo pelos cangaceiros, que além dele mata os coadjuvantes, exceto Chicó.
Quando comecei a reassistir depois de anos a minha intenção não era apenas relembrar o enredo e tirar boas risadas, de fato ri muito, mas chorei também. E em cada situação foi fácil reconhecer na vida sofrida dos sertanejos, na amizade dos dois amigos, no romance inesperado, a similaridade com a vida do nordestino em si. Seja 1955, 2000, ou 2025, o nordestino, o brasileiro estavam ali nas entrelinhas. Lembro que quando criança a cena que me causava certo pavor, é hoje a cena que me deixa mais emocionada agora, adulta. A cena da igreja, o confronto dos mortos com Jesus, Diabo e a Compadecida.
João Grilo, grita por Maria, para que se compadeça e lhe dê misericórdia. Diante das acusações pecados causados por ele em vida, o Diabo que tenta a todo custo o levar para seu próprio purgatório. A Fernanda Montenegro em sua bela performance me tirou todas as lágrimas possíveis, ver Jesus, toda a vida do João ali narrada por eles, não me aguentei. Talvez o fato de ter passado por uma enorme tempestade pessoal, me fez abraçar ainda mais a espiritualidade.
Não sei, só sei que foi assim.
Não há um só brasileiro que não tenha visto o filme ou que não conheça a história de Chicó e João Grilo, de alguma forma me remete muito aos cordéis nordestinos, são textos rimados, quase como uma declamação de poemas, impressos em folhetos.
Então em celebração de quase 25 anos depois, surge o segundo filme. Lançado em dezembro de 2024, teve uma grande estreia. Em minha humilde opinião não acredito que possua mesma energia do primeiro, mesmo que tenha conseguido amarrar bem o enredo com os mesmos elementos do primeiro, que o tornou tão querido e aclamado pelo público. Quando assisti, tive a sensação de revisitar uma família que há muito tempo não via, ri, chorei, gargalhei e guardei num cantinho especial no meu coração.
No novo filme temos a volta de João Grilo volta para encontrar seu melhor amigo Chicó, que após ser abandonado por sua paixão e esposa Rosinha, sobrevive a narrar por toda a cidade a famosa “ressureição do amigo” de João Grilo, aquele que teve um encontro com Jesus e a Virgem Maria, que por misericórdia o deu mais uma chance no mundo. João Grilo, vira então um santo na cidadezinha. Com isso somos apresentados a novos personagens, novas aventuras e mentiras, um novo encontro com Jesus, o Diabo e a Virgem.
Um filme que merece a fama que tem. Me trouxe de volta a vida e um caminho para encontrar a mim mesma. O poder que arte tem é surreal, as vezes me questiono como que alguém consegue viver na ignorância de não consumir qualquer tipo de arte. Ela é diversa demais, boa demais, convida à vida. Para não me prolongar e ser cansativa, acredito que estou de volta aos meus textos, porque a arte do cinema, assim como a música é minha terapia diária. Voltei a sentir o sabor da vida, voltei aos meus velhos hábitos que acabam por ser meu combustível mágico.
Não sei, só sei que foi assim.