A comida vêm sendo representada nas artes visuais há séculos, tanto em pinturas de natureza morta, que demonstram de forma realista a beleza do alimento, quanto em representações de cenas de alimentação, como jantares, por exemplo. Mas a comida, tal como é, pode ser considerada arte?

A comida, tal como a conhecemos, é formada por preparações culinárias feitas de maneira específica a cada cultura. Não se trata dos ingredientes crus em si, mas sim do que é feito, preparado, a partir deles. O ato de preparar é central. A comida, como a humanidade a conhece há milhares de anos, é definida pela preparação culinária. O pão, por exemplo, alimento consumido desde a formação das primeiras sociedades, é feito a partir de um processo de preparo.

Essa visão mostra que a comida não só pode ser arte, mas que é uma das formas mais antigas de arte desenvolvidas pela humanidade. A atenção ao aspecto artístico se revela em objetos criados por humanos quando há um cuidado com características que não têm valor apenas utilitário, mas que proporcionam uma experiência especial. A preparação culinária visa melhorar as propriedades nutricionais dos alimentos, mas também envolve o cuidado com o sabor e a textura.

Ademais, a comida não apenas é uma arte como é uma arte altamente colaborativa e especializada. Cada prato envolve inúmeros profissionais, conhecimentos e tecnologias. Há um esforço colaborativo, como no cinema, que vai desde os trabalhadores do campo, até o processamento e os temperos.

A comida é uma forma de arte que envolve todos os sentidos: não apenas visão e audição, mas também paladar, olfato, tato, além da percepção de textura. O alimento, portanto, no cinema, também pode auxiliar na sensorialidade de uma obra.

A comida no cinema

O gênero de comida no cinema começou a tomar forma no final da década de 1980. O exemplo mais famoso é A Festa de Babette (1987), no qual um banquete preparado por uma chef transforma a vida de uma comunidade. A comida aqui não só nutre fisicamente, mas também espiritualmente, restaurando laços sociais e emocionais. A metáfora religiosa e a simbologia da refeição são centrais nesse filme, conectando a culinária ao transcendente.

Contudo, antes disso, a comida já era, de forma menos predominante, utilizada no cinema. De fato, um dos primeiros filmes feitos por Auguste e Louis Jean Lumière em 1895 retratava um bebê comendo.

A forma que os “filmes sobre comida” se utilizam do alimento o transforma em toda uma nova linguagem visual, que transforma a maneira com a qual o público experimenta a comida na tela. As técnicas de câmera, como closes extremos e perspectivas despersonalizadas, acentuaram os prazeres do consumo de comida, oferecendo ao público uma experiência sensorial indireta. Essas técnicas permitiram que a comida ganhasse uma nova vida no cinema, deixando de ser apenas um elemento narrativo para se tornar uma personagem importante.

Através de closes, a textura dos alimentos ganha destaque, enquanto a iluminação e os efeitos sonoros amplificam ainda mais essa experiência, fazendo com que os ingredientes brilhem e emitam sons envolventes. Esses recursos elevam o realismo da comida no cinema, tornando os pratos exibidos na tela quase palpáveis. Esse excesso de estímulos sensoriais pode gerar respostas físicas no espectador, sublinhando a forte conexão visceral entre o filme e a audiência.

Ao enfatizar aspectos sensoriais — como a textura e o som —, esses filmes permitem que o público experimente a comida de maneira pessoal, sem sequer prová-la.

O gênero de filmes sobre comida revolucionou a maneira como vivenciamos a comida no cinema, transformando-a em uma poderosa ferramenta sensorial e cultural. Esses filmes envolvem o público, criando a ilusão de que se pode saborear e tocar os alimentos. Em tais filmes, a comida toma papel de destaque, o que significa que a câmera se concentra na preparação e apresentação dos alimentos de modo que a comida preencha a tela. E a linha narrativa do filme representará consistentemente os personagens negociando questões culturais ou pessoais através da comida.

A comida também pode ser fortemente utilizada como forma de simbolismo. Segundo Gaye Poole, autora de Reel Meals, Set Meals: Food in Film and Theatre:

É possível ‘dizer’ coisas com a comida: ressentimento, amor, compensação, raiva, rebeldia, retirada. Isso a torna uma perfeita transmissora de subtexto; mensagens que são frequentemente implícitas em vez de explícitas, mas surpreendentemente variadas, fortes e, às vezes, violentas ou subversivas.

Em O Sabor da Vida (2023), dirigido por Tran Ahn Hung, os pratos preparados não são apenas refeições, mas portadores de história, cultura e emoção.No filme, os pratos exibidos são tratados como obras de arte em si, desde a preparação até a apresentação final. Cada movimento na cozinha é cuidadosamente coreografado, reforçando a ideia de que cozinhar é um ato criativo e expressivo. A câmera captura os ingredientes com closes detalhados, destacando cores vibrantes, texturas ricas e a interação sensorial entre os personagens e os alimentos.

A iluminação desempenha um papel crucial, realçando os alimentos para criar um efeito visual quase mágico. Sons de cortes, fervuras e frituras são amplificados para proporcionar uma conexão quase visceral com o público. Essa abordagem destaca o aspecto multissensorial da comida, alinhando-se com a ideia de que ela é arte tanto pelo sabor quanto pela experiência estética.

A relação entre comida e arte revela uma dimensão rica e multifacetada da experiência humana. Desde os primórdios da representação visual até o cinema contemporâneo, a comida transcende o simples ato de sustento para se tornar um meio de expressão cultural, emocional e sensorial. Filmes como O Sabor da Vida e A Festa de Babette demonstram como a culinária pode ser uma linguagem universal, articulando valores, tradições e transformações pessoais.

A análise desses filmes evidencia que a comida, além de ser um recurso estético e narrativo, é um reflexo da sociedade e das relações humanas. O simbolismo dos pratos, o processo de preparo e o ato de compartilhar refeições oferecem insights sobre os personagens e os contextos culturais em que estão inseridos. Em A Festa de Babette, por exemplo, a comida não apenas transforma uma comunidade rígida e austera, mas também celebra a generosidade e o sacrifício como expressões artísticas.

Portanto, o papel da comida no cinema vai além de sua função sensorial: ela se torna uma ponte entre o material e o imaterial, o pessoal e o coletivo, o real e o transcendente. É uma forma de arte colaborativa que envolve múltiplos sentidos e conecta diferentes esferas da experiência humana. Assim, ao destacar a comida como uma forma de arte no cinema, reafirma-se sua capacidade de transcender fronteiras culturais, oferecendo um terreno fértil para exploração estética, narrativa e simbólica.