A dublagem, uma arte essencial para a democratização do acesso ao conteúdo audiovisual em diferentes línguas, está vivendo um momento de profunda transformação impulsionada pela inteligência artificial (IA). Recentemente, o tema de “a dublagem vai acabar?” tornou-se praticamente onipresente entre os profissionais e fãs da área, mobilizando debates que envolvem desde aspectos técnicos e econômicos até questões culturais e jurídicas.

Um grande fator que tem contribuído para a popularização da dublagem por inteligência artificial é a familiarização crescente do público com vozes sintéticas no dia a dia. Assistentes virtuais como Siri, Alexa e Google Assistant são exemplos amplamente usados que introduziram as pessoas a uma experiência auditiva baseada em sons digitais, que, embora alheios a uma interpretação artística tradicional, possuem fluidez e clareza que vão melhorando com o tempo. Isso faz com que, progressivamente, espectadores de conteúdos midiáticos se acostumem à ideia de vozes digitais também em filmes e séries.

Além disso, plataformas de redes sociais como TikTok e YouTube disseminam conteúdos com vozes geradas por IA, tornando essa experiência ainda mais comum e natural. Países como a Polônia já adotam vozes sintéticas para dublar filmes, e a reação do público é de aceitação. Ou seja, a resistência inicial que poderia ser esperada está sendo minimizada, o que fortalece a possibilidade técnica e comercial da disseminação dessa prática em escala mundial. Isso reflete uma tendência clara: a voz sintética não é apenas uma ferramenta, mas uma nova interface na relação do espectador com o audiovisual.

Dublar um filme utilizando métodos convencionais demanda uma estrutura bastante complexa e dispendiosa. Estima-se que entre 60 e 80 profissionais possam estar envolvidos, incluindo atores, técnicos de som, diretores, produtores e pessoal de apoio. Esse processo é não apenas caro, mas sujeito a imprevistos como faltas, problemas de saúde e agendas conflitantes, o que inevitavelmente resulta em atrasos e encarecimento final do produto.

Em contraste, a legendagem, que pode envolver uma ou poucas pessoas, é uma operação muito mais enxuta, rápida e econômica. Por isso, grandes estúdios e plataformas de streaming têm interesse em reduzir custos e otimizar prazos por meio do uso da IA. A possibilidade de gerar uma dublagem a partir de um software, reduzindo drasticamente os custos e eliminando as variáveis humanas, cria uma proposta de valor comercial muito atrativa para esses players.

Há ainda um aspecto estratégico: com tecnologias avançadas, uma única versão de dublagem pode ser criada simultaneamente para várias línguas, aumentando a escala e a uniformidade do produto. Contudo, essa eficiência traz riscos claros para o mercado de trabalho das vozes humanas, o que exige reflexão e ação imediata do setor.

No Brasil, o panorama da dublagem ainda é marcado por uma falta de união e maturidade frente às transformações tecnológicas. Porém, esse desafio não é apenas brasileiro, mas aqui se manifesta em um ambiente onde decisões são muitas vezes baseadas em relacionamentos pessoais, egos e interesses regionais, como entre São Paulo e Rio de Janeiro. Isso cria um cenário de fragmentação que atrapalha o desenvolvimento de estratégias coletivas capazes de proteger os profissionais da dublagem e regulamentar o uso da IA.

Essa dispersão dificulta que associações, sindicatos, estúdios e demais atores se unam para definir diretrizes legais e de mercado que possam trazer segurança jurídica em um momento de transição. A experiência do autor, que também é empresário, mostra como muitos dubladores jamais tiveram acesso a informações fundamentais sobre custos, impacto do mercado internacional, ou a real contribuição que a voz humana traz para uma produção.

Para enfrentar esse contexto, é necessária a construção de diálogos internacionais , sobretudo com países que já têm experiência consolidada na dublagem, como França, Espanha e Alemanha, visando a criação de normas internacionais e legislação protetiva. Ainda, a mobilização popular, por meio de conscientização e apoio público, é crucial para pressionar órgãos legislativos a abordarem essa questão de maneira efetiva.

Um aspecto positivo da tecnologia de IA é a possibilidade de preservar para sempre as vozes de dubladores icônicos, garantindo que seus trabalhos não se percam com o tempo. A ideia de “eternizar” vozes consagradas, como a do Goku ou de artistas já falecidos, abre caminho para novos projetos que possam utilizar essas vozes de forma legal e remunerada.

Isso traz à tona modelos comerciais inovadores, nos quais o dublador poderia receber direitos autorais ou royalties vitalícios pela utilização da sua voz digitalizada, o que pode significar uma fonte de renda adicional e contínua, mesmo após ele se aposentar ou falecer.

Por outro lado, essa possibilidade exige cautela quanto aos direitos morais e à autonomia dos artistas, uma vez que a voz é parte da identidade de um profissional e seu uso deve ser sempre autorizado e controlado. Por fim, é importante enfatizar que dublagem vai muito além da simples reprodução da fala. Trata-se de um trabalho artístico profundamente ligado à cultura local, à emoção e à adaptação contextual. O dublador, em conjunto com o diretor, faz escolhas criativas que envolvem entonações, expressões e nuances que conciliam o texto original com as expectativas e especificidades do público nacional.

A inteligência artificial, por mais avançada que seja, ainda está longe de capturar todas essas sutilezas. Ela pode realizar traduções literais, mas a chamada “versão brasileira” é uma adaptação que exige percepção cultural, sensibilidade emocional e timing , fatores que são complexos para uma máquina sem consciência ou vivência humana. Exemplos incluem diferentes reações a uma mesma piada ou cena dramática, que podem variar drasticamente de país para país.

Portanto, a IA pode atuar como uma ferramenta que automatiza processos, mas dificilmente substituirá o talento humano para captar a alma da narrativa e comunicá-la com fidelidade cultural e artística. Dessa forma, ainda que a inteligência artificial represente uma ameaça à forma tradicional da dublagem, ela também abre possibilidades para inovação, eficiência e até novas formas de valorização do profissional. Para garantir um futuro sustentável para essa área, será fundamental o fortalecimento da união entre atores, estúdios, sindicatos e a sociedade, além da criação de leis específicas que protejam o papel insubstituível do artista humano.

Somente dessa forma será possível promover uma convivência equilibrada entre tecnologia e arte, onde a dublagem continue a ser um elo cultural importante e acessível para todos.