Ele passava os dias em seu consultório-oficina, ajustando engrenagens minúsculas e polindo os delicados ponteiros dos relógios que pulsavam dentro do peito de cada pessoa. Esses relógios não marcavam segundos comuns; eram os guardiões do tempo vivido.
Cada tic era um momento, cada tac, uma memória. Mas quando as engrenagens emperravam ou os vidros se trincavam, as pessoas perdiam a capacidade de sentir. Era aí que ele entrava em ação, desmontando os mecanismos e restaurando o movimento.
Ninguém sabia ao certo de onde ele vinha. Diziam que o médico tinha o dom de ouvir os relógios que habitavam os peitos das pessoas. Mas não era só isso. Ele não apenas os ouvia: ele os sentia, pulsando, gritando, implorando por conserto.
As pessoas chegavam ao consultório sem marcar hora. Não era necessário. O tempo delas era sua única urgência. Ele as recebia em silêncio, com olhos que pareciam entender tudo antes que qualquer palavra fosse dita. Era como se, ao entrar ali, os pacientes estivessem despindo não só o corpo, mas também a alma. “Doutor, meu relógio parou”, disse certa vez uma mulher de olhar perdido.
Ele apenas assentiu e pediu que ela se sentasse. Colocou o estetoscópio sobre seu peito e ouviu. Não havia tic-tac. Apenas um vazio, oco, como um buraco negro que sugava o som e o ar ao redor.
“Quando foi que parou?”
“Eu não sei. Talvez naquele dia... Ou foi antes? Não lembro mais. Só sei que não sinto nada. Nem dor, nem alegria. Só esse silêncio.”
O médico abriu a portinhola do relógio dentro do peito da mulher. Lá dentro, viu horas interrompidas, momentos que haviam se desfeito no ar, como poeira ao vento. Ele tocou as engrenagens com dedos hesitantes. Elas não estavam quebradas, mas trancadas, como se tivessem medo de girar.
“Está tudo aqui”, disse ele, mais para si do que para ela. “Só está escondido. Você tentou esquecer algo que não queria lembrar?”
A mulher abaixou a cabeça. “Eu pedi que meu tempo parasse.”
Ao girar a engrenagem com cuidado, o relógio voltou a pulsar, mas com dificuldade, como um coração recém-reanimado.
“No começo, vai doer. Mas depois, o tempo encontrará seu ritmo.”
À noite, quando todos os pacientes se iam, o consultório mergulhava em um silêncio quase sagrado. Era nesse momento que ele olhava para seu próprio relógio.
Ele sabia que algo estava errado, mas evitava confrontar o problema. O médico que curava o tempo dos outros tinha medo de abrir o próprio peito. O que encontraria lá dentro?
Uma noite, não conseguiu mais evitar. Estava cansado demais, e o silêncio se tornou insuportável. É sufocante apenas existir. Um suicídio disfarçado.
Com as mãos trêmulas, as testas cobertas de suor, ele abriu a portinha.
Lá dentro, encontrou uma hora congelada. O ponteiro estava preso em um instante — um instante de uma dor tão profunda que ele nunca tivera coragem de revisitar. O relógio não girava desde então, mas ele disfarçava bem: não vivia, apenas existia.
Ao tocar a hora congelada, sentiu o peso de tudo que havia evitado. As engrenagens estavam enferrujadas, cobertas de um pó fino, como memórias que ninguém quer reviver. Ele fechou os olhos e girou o ponteiro. O ruído fino, enferrujado, arranhava seus ouvidos e, de repente, o tempo o invadiu.
— Mãe? — a voz saiu trêmula, ecoando em sua mente.
Era ele, um menino de pés descalços e joelhos ralados, estendendo a mão para uma figura que parecia tão próxima, mas ao mesmo tempo inalcançável. A mulher tinha os olhos voltados para o céu, e seus passos eram leves, como se ela já estivesse se despedindo do chão. Ele se lembrava da poeira levantada pelo carro, que desapareceu rápido demais, deixando para trás apenas um vazio opressor.
Aquele momento não era apenas um segundo perdido no tempo; era um marco, o início de uma sequência de dias em que a dor se acumulou como um relógio que não para de contar. E ele, menino ainda, não soubera como lidar. O ponteiro do relógio em seu peito congelara ali, preso entre o abandono e o luto.
Não foi apenas aquela memória que voltou, mas todas as que ele enterrara junto com ela. A solidão, a sensação de não ser suficiente, as noites silenciosas em que o peso do tempo parecia insuportável. Ele não chorou como médico, mas como o menino que nunca tivera permissão para sentir.
E ali, no meio da dor, ele compreendeu. Não era o tempo que parava, mas as pessoas que se recusavam a movê-lo, presas em seus próprios medos e arrependimentos. Ele girou os ponteiros do próprio relógio, sentindo o som rouco das engrenagens enferrujadas retomando o movimento.
O peso era imenso, mas havia também algo novo: alívio.
O tempo é impiedoso, porque não para, porque nos carrega mesmo quando estamos exaustos. O tempo. No final do dia, ele olhou para o próprio reflexo no vidro da porta. Colocou a mão sobre o peito e sentiu o ritmo regular de seu relógio. Não estava perfeito — nunca estaria. Mas estava vivo, e isso era suficiente. Porque, no fundo, não se trata de perfeição, mas de movimento.