O conceito de affordances, introduzido pelo psicólogo James Gibson 1, refere-se às possibilidades de ação que os objetos ou ambientes oferecem aos indivíduos. Gibson argumenta que as affordances são percebidas diretamente pelos nossos sentidos e estão intimamente ligadas às características físicas dos objetos ou ambientes. Como exemplo, ele explica que uma cadeira oferece a affordance de sentar, enquanto uma porta oferece a affordance de abrir ou fechar. Segundo o autor, as affordances são determinadas pelas propriedades perceptíveis dos objetos ou ambientes, como forma, textura, cor, tamanho etc. Já o designer Donald Norman2 expandiu o conceito ao destacar que as affordances percebidas de um objeto nem sempre correspondem às suas affordances reais, mas podem ser influenciadas pela experiência e conhecimento prévio. Dessa forma, as affordances referem-se às possibilidades de ação que os objetos ou ambientes oferecem aos indivíduos, e também são determinadas pelas características perceptíveis dos objetos ou ambientes. Numa sala de aula convencional, o quadro negro, o giz e as carteiras são as affordances que propiciam/possibilitam/contribuem para a realização do ensino e da aprendizagem.

Na metodologia audiovisual, outras affordances foram apresentadas, como os projetores, os retroprojetores, as carteiras móveis etc. No advento da comunicação digital, mais affordances foram introduzidas ao ambiente escolar-acadêmico, como os computadores, softwares, tablets, celulares, aplicativos etc., sendo que esses últimos possibilitam acesso em “qualquer lugar”, ou seja, podem ser acessados fora da escola, contribuindo para o aprendizado ubíquo, aquele que se realiza nas várias formas de interação e vivência fora ou dentro da escola.

A evolução do conceito propõe também aspectos relacionados com o ambiente e o contexto social no qual o sujeito que percebe se insere. É importante mencionar que o conceito de affordance foi traduzido no português para propiciação, por alguns autores, dentre eles o antropólogo de Otávio Velho3. Ele menciona que o termo foi desenvolvido na psicologia ecológica para identificar propriedades do ambiente que não são fixas, mas que emergem na interação com um agente específico. O autor cita o exemplo de um ambiente como a água, que tem a affordance de andabilidade para certos insetos e répteis, mas não para um organismo humano. Boyd4 e outros autores trazem o conceito de affordance para o digital com exemplos, como o binarismo, fractalidade e copiabilidade, e outras mais específicas aos dispositivos e interfaces, como portabilidade, editabilidade, multimedialidade, escalabilidade, buscabilidade etc.

Os professores William Cope e Mary Kalantzis5 propõem uma nova ecologia da aprendizagem online (E-learning Ecology), que é compreendida e explorada a partir de sete affordances dos recursos e plataformas digitais. Segundo os autores, essa nova ecologia se dá a partir das transformações nos padrões das pedagogias que acompanham o e-learning a partir de três frentes: no uso de dispositivos de computação que fazem a mediação ou complementam as relações entre alunos e professores; na apresentação e avaliação do conteúdo que está em jogo; e também na oferta de espaços em que os alunos podem fazer suas atividades e interagir com professores e colegas. As possibilidades que o digital traz para a educação, segundo Cope e Kalantzis5, ou as affordances do digital, são: a possibilidade de a aprendizagem acontecer em qualquer lugar (aprendizagem ubíqua); o desenvolvimento da autonomia do estudante; a possibilidade de construção de sentido a partir da multimodalidade; as ações voltadas a uma avaliação formativa; as possibilidades de devolutivas ao longo do processo ou ampliação do diálogo educacional; a inteligência colaborativa ou a criação de espaços de trocas mais intensas entre todos os atores de uma situação de aprendizagem; o acesso a recursos de metacognição para que os estudantes possam pensar sobre o pensar com mais frequência; e, por fim, a possibilidade de oferecer percursos distintos aos estudantes, a partir da necessidade de ajuda, interesse e ritmo.

As affordances ou possibilidades oferecidas pelos recursos digitais, segundo os autores, não são uma nova proposta educacional, mas viabilizam um trabalho educacional voltado às necessidades de aprendizagem e ao novo cenário proposto. O termo affordances também remete à noção de que as tecnologias digitais podem viabilizar aspectos para uma educação dialógica, alinhada à proposta dos letramentos, mas não necessariamente determinam tais propostas.

No que diz respeito à aprendizagem ubíqua, segundo Cope e Kalantzis5, o digital altera a relação do sujeito com o tempo e espaço dedicados à aprendizagem. As tecnologias digitais tornam possível o maior acesso à informação e os equipamentos tornam-se acessíveis a uma parte da população, como, por exemplo, os celulares. No entanto, o acesso à informação não implica necessariamente a possibilidade de construção de conhecimento. A aprendizagem pode acontecer em qualquer lugar, não somente em um momento escolar-acadêmico específico do dia. Isso significa interação e aprendizagem em qualquer momento do cotidiano das pessoas, sem a administração e o controle das instituições educacionais. Na estrutura escolar (com currículos, planejamentos etc.), pode haver maior transparência no processo de aprendizagem, mas também pode haver maior controle.

Sobre a construção da autonomia, os estudantes podem exercer diversos tipos de participação, podem ser produtores de conhecimento (aprendizagem participativa) e não somente consumidores de informação, como se fossem meros receptores de informação. É importante ressaltar que o “consumo” de informação pode ser interpretado como uma “recepção passiva”, remetendo à ideia de que o aluno é um copo vazio, que pode ser cheio, fazendo com que ele passe a conhecer algo. Essa é a ideia da educação bancária, de Paulo Freire, e vai de encontro a uma perspectiva socioconstrutivista do conhecimento, no qual o estudante constrói seu próprio conhecimento, por meio dos seus conhecimentos prévios e suas perspectivas, em interação com seus pares. Por causa, também, do maior acesso à informação, a relação professor-aluno pode flutuar de uma estrutura hierárquica - professor que sabe, aluno sem conhecimento - para um modelo de construção ativa do próprio conhecimento por parte do estudante. A memorização pode perder força no processo e a construção e representação do próprio conhecimento pode se tornar mais presente.

Sobre a multimodalidade e o seu impacto na construção de significado diante do acesso e da possibilidade de produção multimodal, o digital pode ampliar o acesso a ferramentas diversas de representação do conhecimento. A criação digital conta com maior possibilidade de uso de áudio, vídeo, imagem, e novos gêneros se constituem e se estabelecem. As mídias invadem os espaços de aprendizagem e a construção de conhecimento sofre impacto, a partir de uma maior diversidade de formatos da linguagem.

Monte Mor6 revisita práticas de análise de imagens propostas em atividades educacionais na década de 1980, que visavam [...] promover o exercício de expansão interpretativa ou de perspectiva. Segundo a professora, a proposta era expandir o chamado habitus interpretativo, conceito proposto a partir de suas pesquisas, que indica a necessidade ou a pertinência em ampliar a visão de mundo ou o letramento crítico. Ela reflete sobre o fato de que a leitura e a escrita precisaram ser disseminadas em grande escala, em certo momento histórico, e que esse fato influenciou a estrutura das instituições educacionais que, por sua vez, [...] foram pensadas a partir de orientações relativas ao universo da escrita, numa lógica tipográfica: compartimentada, segmentada, cumulativa, gradativa e linear6. A concepção de linguagem aderiu a esse mesmo enfoque, que envolveu simplificar a diversidade linguística, cultural e identitária em um padrão linguístico único, destinado a ser adotado por todos. Além disso, houve uma ênfase no ensino da padronização dos significados, com o objetivo de facilitar a compreensão previsível entre as pessoas. Para atingir esse objetivo, foram estabelecidos acordos gramaticais e linguísticos para garantir a conformidade e a uniformidade da língua a ser ensinada e aprendida, com ênfase na modalidade escrita. Esses acordos excluíram as diversidades presentes nas práticas sociais, nos sujeitos envolvidos e nas diversas identidades culturais.

Sobre as devolutivas (feedback) aos estudantes e entre eles mesmos (diálogo educacional), o processo de aprendizagem pode se tornar mais visível e as ações de avaliação formativa podem ser mais bem ajustadas. O feedback não vem somente do professor, pois outros atores podem comentar, intervir, auxiliando o processo de toda a comunidade de aprendizagem. A relação com o erro pode ser revista e há maior possibilidade de processos de tentativa, erro, ajustes e novas tentativas. A avaliação pode fazer parte do processo de construção do conhecimento e alguns recursos podem favorecer dinâmicas de registro potentes como o uso de portfólios ou históricos de aprendizagem.

Com relação à inteligência colaborativa, há mais acesso a recursos de publicação coletiva, de conexão, de cooperação e colaboração na rede. Os autores chamam de “economia da ajuda” o fato de os auxílios serem valorizados na ação educacional; a leitura e avaliação do trabalho de outro faz parte da formação. Alguns autores abordam o conceito de comunidades de aprendizagem: comunidades de prática que são viabilizadas e potencializadas com o uso da internet. O conceito de Computer Supported Collaborative Learning (CSCL) ou Aprendizagem Colaborativa Apoiada por Computador vai ao encontro dessa affordance e combina noções da aprendizagem colaborativa e o potencial das tecnologias digitais ou ambientes virtuais para apoiá-la.

A metacognição é uma característica fundamental de uma prática educacional crítica, como a que é proposta pelos letramentos / letramentos críticos. Os recursos digitais e as possibilidades de registro e memória do percurso de aprendizagem possibilitam a ampliação de se conhecer como se constrói o próprio conhecimento. As aprendizagens com sentido são aquelas que ajudam os estudantes a se conhecerem mais e entenderem melhor os seus processos de construção da própria identidade. Pensar no geral e no específico, pensar sobre o próprio pensar, observar avanços e retrocessos, conscientizar-se de si próprio: esse é o caminho para o trabalho com a metacognição.

Sobre a ajuda ajustada ou aprendizagem diferenciada, a affordance do digital se traduz nas possibilidades referentes aos diferentes percursos de aprendizagem. Não é exigido que todos os aprendizes "estejam na mesma página”, como em um livro didático, mas que possam percorrer caminhos específicos a partir de suas possibilidades de aprendizagem.

As sete affordances propostas por Cope e Kalantzis5 trazem uma relação importante entre as possibilidades dos recursos digitais e questões pedagógicas relevantes considerando também a pedagogia dos multiletramentos. Finalmente, considerando que o digital permeia nossas relações e que as interações são determinantes para a aprendizagem, o conceito de affordances pode ser determinante para a qualidade das ações educacionais.

Notas

1 Gibson, J. J. The theory of affordances. In: Shaw, R.; Bransford, J. (ed.). Perceiving, acting, and knowing: toward an ecological psychology. Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum, 1977. p. 67-82.
2 Norman, D. A. Affordance, conventions, and design. Interactions, [s.l.], n. 6, p.38-43, 2009.
3 Essa tradução aparece em: Velho, O. De Bateson a Ingold: passos na constituição de um paradigma ecológico. Revista Mana, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, out. 2001.
4 Boyd, D. Social network sites as networked publics: Affordances, dynamics, and implications. In: Papacharissi, Z. (ed.). A networked self. New York, NY: Routledge, 2011. p. 39-58.
5 Cope, W.; Kalantzis, M. Literacies. Cambridge: University Press, 2012.
6 Monte Mor, W. Os estudos de Kress em foco: gramática visual, construção de sentidos e design. Cadernos de Linguagem e Sociedade, Brasília, v. 22, n. 1, p. 300-320, 2021.