O turno do Chico acabava sempre tarde. Às 24h, quando saia do armazém e fazia o caminho de casa, já não havia muita gente a passear, o frio e a ameaça de chuva faziam qualquer pessoa pensar duas vezes antes de sair de casa.

As ruas estavam iluminadas pelos candeeiros, pelas montras das lojas, que começavam a preparar-se para o natal, e pelos faróis dos carros que passavam. Chovera o dia todo e enormes poças de água ocupavam o passeio, obrigando-o a alternar o caminho pela estrada.

Caminhava calmamente a ouvir um blues, tendo já uma ideia de onde podia beber qualquer coisa àquela hora. Os gatos passavam-lhe à frente, procuravam comida e escondiam-se novamente entre os carros. Saiu da rua principal e entrou num beco pouco iluminado, uma das lâmpadas quase fundida piscava tentando manter-se acesa. Poucos metros à frente viam-se as luzes néon, de um estabelecimento, que diziam “Snack-bar Escondido”. Entrou no espaço na mesma altura em que começavam a cair algumas gotas de chuva transportadas pela brisa; fosse dali a alguns minutos, fosse dali a poucas horas, ela vinha, e vinha com força.

“Que chova tudo enquanto eu cá estiver!”, pensou ele. Desceu o lance de escadas, a cada passo a temperatura ia-se tornando mais amena e o calor abraçou-lhe. Deslocou-se até ao balcão escolhendo um dos lugares onde geralmente se sentava – perto da cozinha –, eram os mais escondidos. Tirou o casaco e após uma sacudidela pendurou-o nas costas da cadeira à sua direita sentando-se na outra do lado.

O espaço preenchia-se de alguma clientela habitual; estavam cerca de sete pessoas distribuídas ao balcão, que falavam umas com as outras; quatro policias, às vezes mais, comiam numa das mesas à janela, o que fazia daquele bar um sítio com um rácio mínimo de escaramuças; um par de casais distribuíam-se por outras mesas e um grupo de seis pessoas, que parecia ter saído do trabalho, socializava, conversando e rindo, numa outra mesa.

Fernando, o empregado, estava a limpar copos e cumprimentou Chico de imediato.

– O que vai ser? – perguntou ele de seguida.

– Imperial, Fernando.

– Foi difícil hoje.

– Nem me fales.

Não demorou muito a ter a Imperial na mesa; bem fresquinha, bem viva e com a espuma a formar uma abobada sobre a bebida sem transbordar.

– Tens que ver daqueles candeeiros lá fora.

– Já falei para a Junta de Freguesia. Até já fui à Câmara Municipal, mas sabes como são eles. Até lhe disse que fazia eu se me emprestassem a grua. Eles disseram que só para o mês que vem, que vem melhor tempo.

– Insiste, senão passam-te a perna.

– Sim, não te preocupes – assegurou Fernando.

Quatro televisões espalhavam-se pela casa, duas ao balcão transmitiam os golos da jornada, e o British Open de snooker dava na outra televisão, onde Brecel ganhava 3 frames contra um de Ding. Ao ganhar, este último passava à fase seguinte.

– Como está o O’Sullivan – perguntou Chico.

– Passou à fase seguinte.

– E o Shelby e o Allen… e o Trump.

– Passaram todos, quem ficou para trás foi o Murphy, perdeu com o Trump, mas foi bem disputado; até à negra.

Sempre que lá estava Chico não conseguia deixar de se admirar com a casa, embora a conhecesse bem; as garrafas expostas, a decoração em madeira incluído mesas e cadeiras, o ambiente noir que ganhava durante a noite.

Com efeito, aquele estabelecimento era-lhe profundamente acolhedor: era genuíno, tinha carácter, era asseado e agradável e os empregados simpáticos. Muito provavelmente era apenas ele que gostava de ali estar para espantar os problemas sem ter ninguém que o chateasse pois que, para outros podia não passar de um restaurante comum.

Durante o dia, o restaurante adotava um funcionamento mais produtivo, com um tempo de refeição mais reduzido, mais eficiente e informal possível. À noite, pelo contrário, a boémia rompia, a luz era mais reduzida e o espaço tornava-se mais sereno. Ali, uma pessoa permitia-se estar várias horas a desfrutar umas refrescantes Imperiais ou qualquer outra bebida.

Dois pequenos degraus ascendiam a uma área com mais mesas, rodeada de uma balaustrada em madeira que a resguardava.

Era ali que devia estar um piano, pensava Chico frequentemente. Quase que conseguia imaginar, naquele canto do bar, um estrado com o instrumento onde o pianista sob uma luz difusa, exibindo uma boina oitavada combinada com uma gravata e um terno desarranjados, tocava um jazz melancólico e algo angustiado que se misturava com os pensamentos das pessoas que lá iam beber para esquecer fosse o que fosse. Sem ovações; um cinzeiro com um cigarro a queimar, um jarro de gorjetas com algumas moedas e notas, e uma caneca de cerveja pousavam no tampo, enquanto ele cantava a sua história percutindo as teclas do instrumento.