Na reconciliação com o declínio e a destruição, talvez despertemos para mais uma parcela da realidade.

(Dahlke, 2002)

Aceitar a morte e a imperiosidade de que alguns seres vivos precisem morrer para que a vida se reorganize continua sendo um desafio para todos nós.

O sentido bíblico do sacrifício consiste em uma oferenda ritual a uma divindade que se caracteriza pela imolação real ou simbólica de uma vítima ou pela entrega de coisa ofertada. Sacrifício também implica em dar ao Senhor qualquer coisa que ele requeira de nós em termos de tempo, bens terrenos e disposição para levar adiante a Sua obra.

Explorando um pouco mais o tema do sacrifício em seu sentido simbólico, encontramos que o mesmo sugere uma dor, seja ela voluntária ou não, em decorrência de um ato de renúncia ou abstenção, ou até mesmo uma perda irremediável, seja pela morte de alguém a quem amamos, ou ainda a perda gradual, mas irreversível, de algo que antes possuíamos, tal como por exemplo, a juventude ou a saúde. Todas essas situações envolvem a aceitação e a elaboração de um dado de realidade, que deixa em nossa boca um gosto amargo seguido de salivação excessiva, possivelmente o prenúncio de um vômito em consequência da difícil digestão de uma “pérola”.

A vida pulsa e emite ruídos estridentes em todos os seres que ela habita. Ouvir o “grito da vida” quando esta se sente ameaçada pode ser muito pungente e avassalador. Aceitar a morte, entretanto, é o grande paradoxo da vida. Saber que a mesma está no caminho de quem está vivo e que mais cedo ou mais tarde dar-se-á o confronto final, é um fato inexorável do qual nos esquivamos até onde podemos, mas que forçosamente, esta outra parcela da realidade abruptamente irá se impor diante de nós e, a despeito de nossa onipotência, não há nada que possamos fazer.

Uma de minhas crenças mais essenciais é que todo ser que respira tem direito à vida. Então, fica muito difícil inserir neste contexto: “Como assim, alguns precisam morrer (o sacrifício supremo)?”

Fica mais fácil e menos dolorido o entendimento desta lei da vida quando analisamos o contexto de um jardim. Como todo habitat, para que as plantas possam ali vicejar de maneira exuberante é preciso retirar as ervas daninhas, fazer as podas e os desbastes, eliminar predadores tais como formigas, pulgões e outros, e garantir que todas as plantas que ali estão, tenham acesso à luz.

Já em outras instâncias, torna-se mais difícil, principalmente quando há derramamento de sangue. Por exemplo, se em meu galinheiro há vinte galinhas, apenas um galo pode ali reinar. Outros eventuais machos precisam ser descartados ou abatidos. Neste caso, ‘descarte’ ou ’abate’ em nossa sociedade são palavras muito leves, que não têm a dimensão sequer do verdadeiro significado de por fim a uma vida que pulsa com intensidade e que, usando uma redundância: ‘quer viver’. Testemunhar, entretanto, um lindo galo aterrorizado, batendo suas asas em direção ao infinito, não é uma situação muito agradável para quem ama animais.

Se a dor da morte pode ser dilacerante para quem está sendo sacrificado, para o autor do abate, nada mais natural...

Também há vidas que são consideradas mais valiosas que outras. A dor de um cachorro ou um gato para muitos vale muito, mas os ‘sentimentos’ de uma vaca ao ser separada de seu bezerro nada significam.
Este é o mundo em que vivemos, onde as leis da natureza são vistas de maneira distorcida através das lentes humanas de nossa sociedade.

Torna-se muito fácil ignorar o sofrimento do outro, seja este outro um ser humano, animal ou vegetal, isto é, qualquer ser que respira e que possui energia vital circulando, mas quando adversidades batem à nossa porta usamos de todos os artifícios possíveis para ignorá-las e fazer de conta que nada está acontecendo.

Desta forma, embalar-se na desesperada esperança de ignorar as leis da realidade pode ser um anestésico tentador, que nos proporciona um alívio momentâneo, mas cedo ou tarde somos obrigados a aceitar que a negação das leis da natureza contribui para a manutenção de nossa fragilidade e não nos torna mais felizes. Surge então uma necessidade imperiosa de agir para sanar algo que tenha se desviado do caminho. Entender e aceitar as coisas como elas são e, funcionar em sintonia com as leis da natureza é sempre a melhor solução.

Dahlke (2002) corrobora o acima exposto ao afirmar que certamente já caímos várias vezes na grande ilusão, na crença de poder surrupiar uma parcela do Todo para o nosso ego, algo que só pertenceria a nós e a mais ninguém. É, no entanto, ilusão achar que podemos guardar algo para nós mesmos; isso é uma evidente negação da única segurança que temos: a certeza de nos separarmos de tudo, ou mais tardar, quando nos separarmos de nosso corpo (p. 71).

O pensamento de que tudo é assim mesmo da maneira que é, é muito antigo, mas difícil de ser aceito por nós. Na realidade, não necessitamos de uma perspectiva nova, mas de um modo inteiramente novo de observar, para sermos capazes de ver também na destruição e no declínio, o pressuposto necessário de um novo início. Uma indicação disso pode nos ser dada pela palavra de origem grega, ‘catástrofe’, que tem, na verdade, o sentido original de ‘retorno’. Os antigos também viam em cada catástrofe, uma oportunidade para o retorno, que pressupõe algo como começar de novo. Uma nova oportunidade, onde partiríamos, no entanto, de um patamar superior ao que antes ocupávamos (ascensão paulatina dos degraus da evolução).

Estar definitivamente ancorados na realidade ao mesmo tempo em que nos ajuda a ver as coisas como elas realmente são, nos isenta de alimentar falsas ilusões enganando-se a si próprio, ou ainda de estar conectado a um mundo onde imperam valores que colocam em evidência nossa mais escancarada futilidade.

A alma que era vazia continua vazia, pois não há como se ‘alimentar’ verdadeiramente e sanar suas angústias existenciais através do culto à aparência, à vaidade, aos prazeres da carne e do ego, ao materialismo, à ganância de quem tem sede de poder.

É muito importante que estejamos sintonizados e despertos para o que realmente importa na vida, lembrando que a mesma é finita e transitória.

Qual é o verdadeiro conceito de ser ‘grande’ para você?

Em que momento da vida cessa o crescimento?

Como se comporta uma pessoa adulta/madura?

Você quer ser essa pessoa? Se sim, então em algum momento da vida, terá que passar por uma prova e necessariamente se confrontará com o exercício do sacrifício.

O sacrifício nos ‘corrói’ por dentro. Faz cair por terra cristas elevadas e nos faz depararmos com a nossa pequenez e impotência. Mas é justamente ele que nos aproxima do que há de mais grandioso no universo, e que opera em nós o processo de lapidação da joia bruta que jaz nas profundezas de nosso inconsciente.

Tornar-se grande tem a ver não com o número de zeros em nossa conta bancária ou os milhares de seguidores que conseguimos arregimentar nas redes sociais, mas com o desenvolvimento da capacidade de se colocar no lugar do outro - sobretudo ser capaz de sentir sua dor - e fazer as podas e desbastes necessários no próprio egoísmo.

O crescimento, em seu sentido amplo, é contínuo ao longo da vida e não cessa com o crescimento biológico e com o desempenho de funções sociais (constituir família, ter sucesso na profissão, construir um patrimônio). O momento mais desafiador de nosso crescimento se apresenta quando se inicia a decadência física, pois é justamente aí que verdadeiramente podemos provar a que viemos ao planeta Terra, e isto necessariamente conduz a um desenvolvimento do espírito.

A pessoa adulta reconhece suas fragilidades e ela está sempre disposta a aprender. Nossa aprendizagem é contínua durante todo o tempo em que estivermos por aqui.

Em qualquer situação o respeito à vida do outro é fundamental. Deixemos, todavia, que a inteligência cósmica faça sua parte. Ela é infinitamente sábia em seu agir, o que nem sempre é acessível ao nosso entendimento.

Referências

Dahlke, Rüdiger. - Mandalas: formas que representam a harmonia do cosmos e a energia divina. 8ª. Ed., Editora Pensamento. São Paulo, 2002.