Imagine o pátio de uma escola. Um grupo ri alto. Um menino, menor que os outros, se encolhe. Um apelido cruel voa como pedra. Ninguém o defende. Ninguém ri… mas também ninguém faz nada.
Agora, visualize uma reunião de trabalho. Uma mulher é interrompida pela quinta vez. Um colega a imita em tom debochado. Ela força um sorriso. Os demais desviam os olhos para o celular. Silêncio. Outra pedra, outro pátio.
O bullying não é um problema da infância. Ele nasce nela, mas muitas vezes cresce conosco — veste uniforme escolar, depois terno, se instala nas redes sociais e em grupos de mensagem. Apenas muda de forma, de cenário, de plateia. E o mais perigoso de tudo: normaliza-se.
O que é o círculo do bullying?
O conceito de “Círculo do Bullying”, elaborado pelo pesquisador norueguês Dan Olweus, é mais atual do que nunca. Ele descreve os diferentes papéis que indivíduos assumem nas situações de agressão sistemática:
Agressor: quem inicia e lidera os ataques.
Assistentes: quem ajuda ou incentiva o agressor.
Espectadores passivos: veem, sabem, mas não reagem.
Defensores: tentam ajudar a vítima ou denunciar.
Vítima: quem sofre a agressão — física, verbal ou emocional.
Talvez você nunca tenha praticado bullying. Mas já ficou em silêncio diante dele? Já compartilhou uma piada ofensiva? Riu por educação, ou desviou o olhar?
Quando o silêncio também machuca
Ser espectador passivo é um dos papéis mais comuns — e mais subestimados — do círculo. A omissão legitima o agressor. Alimenta o espetáculo da crueldade.
Ser espectador passivo é, muitas vezes, o papel mais comum — e mais subestimado — do círculo do bullying. A omissão funciona como uma plateia que alimenta o espetáculo da crueldade. Não agir diante da violência equivale, na prática, a favorecer o agressor.
Zygmunt Bauman, em sua obra Vida Líquida, destaca como a fluidez das relações e a fragilidade dos vínculos na sociedade contemporânea contribuem para o aumento da indiferença. Nesse contexto, o afastamento emocional e a falta de compromisso com o outro criam um terreno fértil para que atitudes agressivas e violentas prosperem sem resistência. O mal não precisa de muito para florescer — basta que a maioria permaneça desconectada, indiferente, imersa em suas próprias inseguranças e instabilidades.
É essa indiferença — essa normalização do distanciamento humano — que sustenta o círculo do bullying, seja no recreio, no ambiente de trabalho ou nas redes sociais. Reconhecer esse padrão é o primeiro passo para romper o silêncio e assumir uma postura ativa contra qualquer forma de violência.
E é nesse vácuo de reação que a violência encontra campo fértil.
Feridas invisíveis, dores duradouras
As marcas do bullying vão muito além do recreio. Segundo um estudo publicado no JAMA Psychiatry (2013), vítimas de bullying na infância têm quatro vezes mais chances de desenvolver transtornos de ansiedade, depressão e baixa autoestima na vida adulta.
No Brasil, o cenário é alarmante. De acordo com a OCDE, somos o segundo país com maior índice de bullying escolar entre os 37 analisados. Apenas a Letônia nos supera.
No ambiente profissional, o bullying muda de nome: vira assédio moral. E também fere. Segundo o Tribunal Superior do Trabalho (TST), mais de 77,5 mil ações relacionadas a assédio moral tramitaram apenas em 2022. Isso representa não só sofrimento pessoal, mas impacto direto na produtividade, no absenteísmo e nos afastamentos por doença mental.
Bullying é crime? Sim. E deve ser tratado como tal
A Lei nº 13.185/2015 criou o Programa de Combate à Intimidação Sistemática no Brasil. Ela reconhece o bullying como violência recorrente — física ou psicológica — praticada de forma intencional e repetitiva. Mais recentemente, a Lei nº 14.811/2024 agravou as penalidades quando o bullying envolve crianças, adolescentes ou ocorre em ambiente virtual. A depender da gravidade, o crime pode resultar em pena de reclusão.
O marco de 2025: quando o Estado decide ouvir o silêncio
Em maio de 2025, entrou em vigor a Lei nº 14.831/2024, dedicada à promoção da saúde mental no ambiente de trabalho, além da atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1).
Essas mudanças impõem:
Avaliação contínua dos riscos psicossociais: estresse, assédio, burnout.
Criação de canais confidenciais de escuta nas empresas.
Treinamentos em empatia, prevenção ao assédio e comunicação não-violenta.
Reconhecimento dos transtornos mentais como doença ocupacional.
Certificação de empresas comprometidas com o bem-estar psíquico.
O que antes era ignorado ou relativizado, hoje tem respaldo jurídico. Ambientes tóxicos agora podem custar caro — financeiramente e socialmente.
Prevenir o bullying é defender a saúde mental
Quando uma criança é humilhada na escola, quando uma funcionária é silenciada em uma reunião, quando uma pessoa é exposta em um grupo de mensagens — não é só um erro social. É um ato de violência. E a resposta exige mais do que leis: exige posicionamento.
A reforma da NR-1 e as novas leis não falam apenas sobre empresas. Falam sobre todos os espaços coletivos: escolas, igrejas, redes sociais, famílias. Elas nos lembram que a violência emocional é tão danosa quanto a física — e que ignorá-la também é uma forma de perpetuá-la.
E você, vai romper o círculo?
Você não precisa ser um super-herói para fazer a diferença. O mundo começa a mudar com atitudes pequenas e corajosas:
Com colegas que se recusam a rir de uma piada machista ou gordofóbica.
Com alunos que se levantam por quem está sendo isolado.
Com gestores que interrompem comentários humilhantes no ambiente de trabalho.
Com mães, pais e professores que escutam de verdade — e acreditam nas vítimas.
Com você, que escolhe não ser cúmplice.
Vivemos tempos estranhos, em que a vítima precisa provar que sofreu, enquanto o abusador, muitas vezes, nem precisa provar sua inocência — é automaticamente defendido, protegido ou ignorado. Essa inversão perversa silencia ainda mais quem já está fragilizado. É por isso que cada gesto de escuta, acolhimento e posicionamento importa. Porque, num mundo onde a injustiça se disfarça de normalidade, ser justo se torna um ato de resistência.
Portanto, o bullying não sobrevive sem plateia. E o silêncio, muitas vezes, é o som mais alto do abuso.
Ele pode ser de covardia ou falta de coragem. Depende de quem o carrega. A pergunta é simples: Na próxima vez que presenciar um ataque, você vai apenas observar ou vai quebrar o círculo com sua voz?
Referências
Bauman, Zygmunt. Vida líquida. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
Brasil. Lei nº 13.185, de 6 de novembro de 2015. Institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 9 nov. 2015.
Brasil. Lei nº 14.811, de 15 de janeiro de 2024. Altera o Código Penal para tipificar o bullying e o cyberbullying como crimes e estabelece outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jan. 2024.
Brasil. Lei nº 14.831, de 27 de março de 2024. Institui o Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental e estabelece os requisitos para a concessão da certificação. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 28 mar. 2024.
Brasil. Ministério do Trabalho e Emprego. Portaria nº 1.419, de 27 de agosto de 2024. Aprova a nova redação do capítulo “1.5 – Gerenciamento de Riscos Ocupacionais” e altera o Anexo I (Termos e definições) da Norma Regulamentadora nº 1 (NR‑1) – Disposições Gerais e Gerenciamento de Riscos Ocupacionais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 ago. 2024.
Copeland, W.E. et al. Adult Psychiatric Outcomes of Bullying and Being Bullied by Peers. JAMA Psychiatry, 2013.
OCDE. Relatório PISA 2018 – Volume III: Bem-estar dos Estudantes.
Brasil. Conselho Nacional de Justiça. Justiça do Trabalho recebe cerca de seis mil ações por mês sobre assédio. Portal CNJ, 7 jul. 2023.
Organização para a cooperação e desenvolvimento econômico (OCDE). PISA 2018: Volume III – Bem-estar dos estudantes. Paris: OCDE Publishing, 2019.















