O decurso do tempo também tem consequências interessantes. Se é verdade que quando passas na rua já ninguém te diz, como antigamente, que tu és uma verdadeira gazela porque as tuas formas ganharam algum arredondamento, quando olhas para o lado e vês filhos e netos, sentes-te compensada de tudo. Como te sentes realizada ao veres os sonhos e as utopias que te mobilizaram toda a vida a transformarem-se em realidade. É o que me acontece quando olho para o avanço extraordinário que teve a luta pela emancipação da mulher, sobretudo na nossa sociedade. Será que alguma jovem sabe o que foi isso da dupla marginalização da mulher? Ou da dupla jornada de trabalho? Somente no domínio da investigação, estou certa. Pois agora as mulheres estão aí, nas escolas e nos locais de trabalho, a ocuparem fatias cada vez mais significativas de ambas. Se até poetas elas se tornaram!

Eu integrei um dos primeiros governos paritários de Cabo Verde e de África. Aliás, em nível mundial não são ainda muitos os países que se podem orgulhar de terem governos paritários. Noruega, Suécia, Dinamarca, claro, a Espanha e poucos mais. Mas eu tive a sorte de integrar um governo paritário e posso dizer que é verdadeiramente a cereja sobre o bolo no processo social de emancipação da mulher. Eu me conheci toda a vida a lutar por esta causa: desde os bancos da escola primária, onde eu declarei solenemente e premonitoriamente aos dez anos de idade que queria ser advogada, numa quarta classe onde ninguém ainda sabia o que queria ser “quando fosse grande”; quando fui para Portugal fazer o curso de Direito pela bagagem que me dava na luta pelos direitos, e fui ativista dos direitos humanos, especialmente dos direitos da mulher; além do fato de que a esta causa dediquei alguns escritos, poesia, romance, ensaio; e por ela integrei organizações nacionais e internacionais. Exemplo forte dessa trajetória é o facto de ter ido trabalhar na véspera do parto do meu codé, só para demonstrar que a gravidez não prejudica a carreira profissional da mulher.

Muitas fizeram como eu e, acompanhando a história, passamos de uma geração de mulheres na família (a da minha mãe) para mulheres na família e na sociedade (a minha). Agora elas estão lá todas: meninas na escola a brilharem, jovens nos locais de trabalho, a produzirem e mulheres na política, a participarem.

Há sectores onde os avanços foram quase miraculosos: fui a primeira mulher a entrar na carreira da magistratura em Cabo Verde. Isto aconteceu há menos de trinta e cinco anos. Hoje, cinquenta por cento da magistratura judicial cabo-verdiana é integrada por mulheres.

Não podemos, pois, duvidar que pelo menos parte significativa do planeta já cumpriu a magnífica profecia de Rimbaud de 1871 e que a mulher, livre da infinita escravidão tornou-se, também ela, poeta… E disso reza o poema Lins Popular:

A Lins vieram todas negras, brancas e amarelas também índias, mulatas e mestiças

Cada uma trouxe seu canto cada uma cantou seu fado
e em múltiplas vozes se revelaram

Vieram trazendo suas dores seus panos
e seus amores

Vieram todas quilombolas, urbanas, rurais sem teto, sem terra e sem abrigo cada uma trazendo sua oferenda

Café milho feijão livros, dvd’s e erva mate para o chá Vieram por todos os meios a pé, de barco, de trem de carro, de ônibus, de avião

Vieram todas trazendo suas estórias
suas ânsias e frustrações

Mas vieram
também trazendo sua alegria sua vontade de viver o grito de guerra que lhes sai da alma por este tempo
que ainda não é seu.

Cortam cana lavram a terra plantam árvores regam suas hortas e em troca recebem desdém
Vieram todas
e vêm gritar
porquê?

Elas escrevem
e ninguém nomeia
porquê?

Elas governam
e ninguém reconhece
porquê?

Elas cuidam
e ninguém agradece
porquê?

Elas cozinham
e ninguém elogia
porquê?

Elas sofrem
e ninguém denuncia
porquê?

Mas da árvore da esperança nascem os mais belos frutos é o oito de março é o lutar ou morrer é o direito libertário
é a libido a pulsar

Elas são mulheres
alegres e criadoras umas
tristes e sucumbidas outras

Elas são mulheres
de todas as cores
de todos os credos que sabem dizer ao poder
todos os poderes o que querem lutando pelos direitos - todos os direitos - querendo ser exatamente o que são

Mulheres
Chutando o balde, virando o jogo, cuidando das crias, buscando a água, carregando a lenha, superando todas as tragédias

Mas também
parindo livros
sonhando poemas
construindo pontes
esculpindo artes

Sofrendo pela vida
mas rindo e cantando

Sim!
um outro mundo é possível, sem estupros, mutilações ou sequestros, sem humilhações, nem discriminações sem açoites, tráficos ou mortes prematuras

Elas vieram
transcendendo a vida
esconjurando a morte
e exaltando o amor

E chegaram
conspirando luas
declarando medos
e se entregando à luta

De Lins ouve-se o rumor...