Aquele dia 20 de abril de 1945 impingiu agonia ao Reich. Fazia primavera na Europa. O clima era bom em Berlim. O frio rigoroso esmaecia. A sensação térmica era amena. O vento ia conforme. Nutrindo frescor. Sem cortar nem maltratar. Leve. Sob um céu cinza. De pouca luz, muitas nuvens e pouco sol. Harmonizando tudo. Fazendo tudo bonito. Tipo preparação. Anunciando festa. Pois era, sim, dia de festa. Festa do aniversário do Führer. 56 anos. Que impunha – desde o Reich – comemoração. Malgrado discórdias. Às favas contradições. Adeus, lamentos. Adeus, lamentações.
Sabia-se que o momento era sensível e antecipador do fim. Fim do Führer, fim do Reich, fim do sonho, fim de tarde, fim de tempos, fim de mês. A embarcação nazista fazia água em todas as partes. Tudo e todos iam a pique. Impossível reverter, improvável remediar, improvável reparar. A entropia era geral, total, terminal. Contando minutos para encerrar tudo.
Sendo aquele aniversário do Führer um singelo medidor de tormento. Que ganhou pressão após o almoço. Às 15 horas. Com a deferência da juventude hitleriana. Que veio de longe, muitas partes, quase em sacrifício, no sincero desejo de festejar. Sentia-se ser a última vez. Com Hitler em uniforme. Ainda maioral e ainda Führer. Nas dependências do Reichstag. Sorvendo o momento. Passando em guarda essas não mais que crianças. Às voltas dos onze anos de idade. Incorporadas à Schutzstaffel; Saal-Schutz, SS, famosa tropa de proteção. Engajadas pelo bem do império. Como futuro do Reich. Destino de um sonho. Que ali – naquela celebração – acelerava a sua desaparição. Feito brisa fina. Dessa que sucede tempestades. Como aquela que encerra o verão.
Hitler cumpria a função. Exalava respeito. Era gentil com as pessoas. Ainda encarnava autoridade. Mas a aventura ia terminando. Deixando como rastro a frustração. Cujo zênite ganhava forma justamente naqueles dias. Fins de março, fins de abril, inícios de maio. Quando Berlim foi toda cercada e ao Reich restou a rendição. Claro: feito humilhação. Como ocorrera em Stalingrado, Roma, Paris, Budapeste, Bucareste, Bruxelas. Uma nuvem de contrários sufocava o Reich e, agora, Berlim. Que agonizava pelos meios mais terríveis. Carregados de carnificina e, vez ou outra, regozijo.
Contradições – carnificina e regozijo – tornadas obsessões de Stalin. Que Roosevelt – morto naqueles dias – apoiava em espírito. Enquanto os generais da aliança – Eisenhower, Montgomery, Clark, Patton, Joukov e Koniev – lideravam multidões para realizar. Leia-se: avançar, dominar, vencer, esmagar o Reich. Não sem resistências. Pois a Wehrmacht, inacreditavelmente, ainda agia. Ninguém entendia. Mas ela ainda agia. Resistia, combatia. Impondo calvários humanos adicionais inclementes. Levando o sofrimento a ultrapassar a dor.
Hitler via tudo aquilo em silêncio. Ele sabia tratar-se do fim. Era o seu aniversário. Mas era também um fim de tarde, fim de partida, fim de mês. Era um 20 de abril que nenhum nazista esqueceria. Pois todos foram obrigados a comemorar.
Cinco dias antes, no 15, o Exército Vermelho chegou a 100 quilômetros de Berlim. Foi impressionante. Hitler nem ninguém acreditou. Populações inteiras, em desespero, fugiam do Reich. Cidades e vilas eram devastadas. Civis e militares, seviciados. Mulheres, violentadas. Apocalipse. Veredicto final: sem salvação. A fúria soviética vinha como eclipse.
Tendo o sol por testemunha e lançando ao Führer a decisão de ficar ou fugir. Viver ou morrer por Berlim. No que ele decidiu ficar. Mas asilado num bunker. Para onde ele se mudou, naqueles dias. 14, 15, 16 de abril. Ao som de Wagner, do Götterdämmerung [O crepúsculo dos Deuses]. Que a rádio do Reich – a mando do Führer – tocara para os três milhões de citadinos de Berlim. Feito meditação. Mas da última vez. Pois o dilema de Hitler, agora, era de todos. Que fazer? Ficar ou partir?
O cerco era presente. Quatro milhões de soldados ingleses, norte-americanos, canadenses, franceses e poloneses ocupavam o front Oeste e porções ocidentais do país. Movendo-se firmes e rápido por Dresde, Leipzig, Thuringen e pelo Elba. Outros muitos milhões de soldados soviéticos dominavam plenamente o front Leste. Esmagando toda sorte de oponente e oposição e rumando decididos para o centro de Berlim.
A Wehrmacht, sim, resistia. Mas divisões inteiras começavam a desertar em todas as partes. Tornando todo o Reich e, notavelmente, Berlim desguarnecidos. Levando Hitler a desmesuras. Mesmo naquele seu dia. Um dia de festa. Quando Stalin, Roosevelt (in memoriam) e Churchill enviavam-lhe esse presente: a concretização do fim de tudo.
Hitler sabia e sentia. O seu corpo já ia exangue. As suas mãos, trêmulas. O seu braço esquerdo, imóvel. Os seus olhos, sem vida. O seu semblante, envelhecido. Preocupando os seus convivas. Dos mais jovens aos mais vividos. Acabrunhando inclusive o seu médico, o doutor Morel, que nada conseguia explicar daquela deformação física tão acelerada.
Foi tudo rápido. Coisa de dias. Naqueles dias. Às vésperas do 20 de abril que a face de Hitler mudou. Envelhecendo muito. Passando a aparentar quinze ou vinte anos a mais que a idade que tinha. Malgrado as doses suplementares de vitaminas e glicose que o doutor Morel lhe impôs – desde o primeiro sinal de transtorno – utilizar.
Mesmo assim, a sua mensagem era firme: capitular nem pensar. Foi isso que ele transmitiu aos meninos da SS naquele dia. Que continuaria com festejos a partir das 16 horas. Mas, agora, com os altos dignitários do partido. Todos eles. Todos vieram e todos estavam lá. Ribbentrop, Goebbels, Himmler, Borman, Göring, Speer. Nenhum, por claro, alimentando ilusão. O fim era incontornável. Restava-lhes encontrar a melhor maneira de terminar.
A ideia de Himmler era seguir envenenando a opinião pública soviética com notícias do anticomunismo anglo-saxão para atrapalhar a relação entre Moscou, Londres e Washington. Ribbentrop, de sua parte, ainda maquinava diretamente por uma ruptura abrupta entre Moscou e Washington antes do fim da guerra. Göring queria fugir para algum lugar. Hitler seguia inamovível. Queria morrer por Berlim. O que parecia aproximar-se.
Pois horas depois, na manhã do dia seguinte, as tropas de Stalin adentraram Berlim e chegaram às portas do Parlamento. Poucos metros do bunker. Impondo ao Führer a fúnebre exclamação: “tudo é perdido!”. E foi mesmo. Dias depois – cinco, dez, quinze – foi o fim de Hitler, fim do Reich e fim da Alemanha nazista.