Nos deparamos com tantos desafios na vida, e muitas vezes nos questionamos se vamos dar conta, penso na questão de sair da zona de conforto. Porém recebi o convite de ser colaboradora do curso de pós-graduação da USP, um curso que brilhou meus olhos quando tive conhecimento do tema, ter o prazer de poder trabalhar a psicanálise, xamanismo e questões sociais. Esse foi o meu desafio, o qual decidi aceitar e confrontar não só o medo de não conseguir alinhar e costurar todos esses assuntos tão complexos e de linguagens diferenciadas, porém falando sobre as mesmas questões da psique humana, e ao mesmo tempo o desafio do tempo, em dar conta de tantas atividades que acabamos assumindo no dia a dia.

Decidi compartilhar essa experiência para falar de como encaramos os desafios e o quanto eles podem nos acrescentar e nos modificar.

Desenvolver temas Junguianos como o Numinoso, termo proposto por Rudolf Otto (1869-1937), um dos pais da Fenomenologia Religiosa. Como traduzir o sagrado e divino, o mistério, o desconhecido, o incompreensível, que quando manifesto se faz perceber como algo distinto da realidade que experimentamos, mas quero falar de Jacques Lacan, Jacques-Marie Émile Lacan foi um psicanalista francês que após estudar medicina, torna-se psiquiatra fazendo seu doutorado em 1932, com a tese cujo tema abordado foi Psicose Paranoica em suas Relações com a Personalidade. Falar de Jung ainda seria minha zona de conforto, então resolvi falar também sobre a linguagem simbólica de Lacan e ir mais além para meu desafio, que seria falar de psicanálise e xamanismo, mas em uma abordagem sobre a teoria Lacaniana. E por que Lacan?

Como psicanalista, estudo diversos teóricos e um deles cuja teoria me despertou grande interesse me dedicando inclusive em uma especialização, foi esse grande mestre Lacan, com um universo de artigos e seminários abrindo nossa mente para o discurso e a linguagem. E é sobre o seu artigo O mito individual do neurótico, que ele nos conta sobre um caso de cura xamânica.

Foi uma grande surpresa quando em meus estudos sobre xamanismo, me deparei com esse artigo, e que existe inclusive um livro sobre o mesmo tema. Foi um caso sobre os índios do Panamá, narrado por seu amigo e antropólogo Claude Lévi-Strauss, sobre a eficácia simbólica atribuída a práticas mágicas, propostas em sua Antropologia Estrutural I. Nessa proposta feita por Strauss, ele admite que a eficácia está na crença da magia. Tendo em vista a argumentação proposta por Lévi-Strauss, levou o próprio Lacan a refletir sobre os procedimentos utilizados pelos xamãs em seus rituais de cura. Nesse mesmo ritual descrito por Lévi-Strauss, o xamã busca auxiliar em um parto difícil, fazendo o uso de canto, da queima de favas de cacau, invocações e outras formas ritualísticas.

Para Lévi-Strauss, na passagem descrita, comenta que o poder adquirido pelo xamã é considerado como inato, para ele os procedimentos que levaram ao sucesso do parto compreende uma medicação puramente psicológica, visto que o xamã não toca o corpo da doente e não lhe administra remédio. Portanto, em sua conclusão, o canto constitui uma manipulação psicológica do órgão doente, e através do canto o xamã conseguiu salvar a mãe e o bebê. Segundo Strauss, existe uma eficácia simbólica operada pela verbalização de um canto dando sentido aos afetos até então incompreensíveis.

E o que tudo isso tem a ver com o convite feito para que eu seja colaboradora de um curso de pós-graduação em Alterciência? O conceito de Alterciência indica um novo paradigma que reconhece o ser humano em sua vida social, artística e intelectual, ela implica numa análise crítica da ciência moderna e contemporânea a partir da perspectiva filosófica, espiritual, moral e física. Portanto, falar sobre psicanálise, xamanismo, linguagem e eficácia simbólica, tem tudo que representa esse universo da psique humana que eu venho pesquisando e estudando por tanto tempo, é bem desafiante essa união de raciocínio e linguagem, um universo que me fascina diante de tanta complexidade do ser humano.

Vivemos em uma sociedade em que o discurso científico funciona numa relação exterior de causa e efeito, sendo que o discurso místico funciona do interior, da linguagem e símbolo, para a representação simbolizada como doença instalada na psique. Esse tipo de expressão verbal foi denominado por Freud de ab-reação. Diz ele: é na linguagem que o homem encontra um substituto para o ato, substituto graças ao qual, o afeto pode ser ab-reagido quase da mesma maneira.

É através desse contexto que Lévi-Strauss se aproxima da Psicanálise, naquilo que Lacan cunhou como O mito individual do neurótico, um mito onde cada sujeito deve construir sua própria história pessoal. De um acontecimento individual distingue-se a estrutura atemporal do inconsciente que se reduz a função simbólica. Sendo assim podemos aproximar a eficácia simbólica dos mitos xamânicos de Lévi-Strauss, ela utilizada por Lacan em psicanálise, com a única diferença na origem individual e social do mito fundador da cura.

Podemos refletir como a clínica psicanalítica nos convida a pensar sobre a atualidade de conceitos como o proposto por Lacan no mito individual do neurótico, para destacar a função do simbólico, a banalização da vida sexual e a noção de lugar simbólico ocupado pelo sujeito na estrutura da psique foi perdida diante de tantas informações e cobranças sociais.

Podemos pensar em várias possibilidades de aproximarmos a psicanálise, xamanismo e alterciência, diante do artigo de Lacan e as referências proposta por Lévi-Strauss, com efeitos transformadores do mito individual, para os processos de subjetivação do gozo. Provavelmente teríamos maiores conquistas em estados numinosos e menos doenças psíquicas. Precisamos nos encontrar como seres humanos em nossa totalidade, distinguir o nosso desejo do desejo do outro.

Os desafios nos trazem maior entendimento e nos fortalecem como profissionais e seres humanos, nos mostrando a nossa capacidade de obter sucesso ou falhar no objetivo final. Mas o importante é que nos transformamos em cada aprendizado.

O Mito Individual do Neurótico, nos faz refletir sobre a estrutura da linguagem; como utilizamos nossa comunicação? como absolvemos o que ouvimos? e de que maneira me expresso?

A linguagem é refletida em nossos comportamentos e atitudes, extraída de nossos próprios conteúdos neuróticos, que por diversas vezes ultrapassam o limite do nosso ego.