O livro Um sopro de vida arrebata pelo modo como se estrutura e dá pistas de um impossível dizer, que se estende do início ao fim. Na apresentação da obra, Borelli1, a quem foram confiados os manuscritos e a ordenação deles, afirma que:

Para Clarice Lispector, minha amiga, Um sopro de vida seria o seu livro definitivo. Iniciado em 1974 e concluído em 1977, às vésperas de sua morte, este livro de criação difícil foi, no dizer de Clarice, escrito em agonia, pois nasceu de um impulso doloroso que ela não podia deter.

A primeira interrogação que se coloca é: o que seria afinal um livro definitivo? Aquele que condensa tudo o que se espalhou em outras obras ou o que ficou ainda por dizer? O que resta, depois de uma longa escrita indicadora do impossível, lateja justamente aí. Escrita aos sopros, aos poucos e aos bocados, intervalada por dores físicas derivadas do avanço da doença, a obra situa-se no limiar do fim.

Será que estou com medo de dar o passo de morrer agora mesmo? Cuidar para não morrer. (...) Eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar2

Tateia-se aqui o que não se pode narrar, algo que o corpo da palavra não alcança, o limite da língua (e da escrita), embora o imperativo seja continuar a fazê-lo mesmo com ele, ou apesar dele. A ordem do real, conceito caro à psicanálise de Lacan3 (1959-1960) e ao discurso de Pêcheux4 (1981), marca a impossibilidade de a língua tamponar o impossível. O significante da morte falta, o furo da vida não é tamponável com a semântica e o estatuto de as palavras faltam é um imperativo para o sujeito.

Eu quero que a frase aconteça. Não sei expressar-me por palavras. O que sinto é intraduzível. Eu me expresso melhor pelo silêncio5.

Esse intraduzível é da ordem estrutural do humano desde seus primeiros balbucios e sempre presentifica o vazio em torno do qual tentativas de dizê-lo volteiam. A língua é um índice do fracasso de alcançar o núcleo duro dessa perdição, embora apenas com ela seja possível dar um tratamento a isso. Pêcheux6 define o real em três ordens complementares: Há um real da língua. Há um real da história. Há um real do inconsciente, o que coloca algo do impossível na injunção da língua (sempre sujeita à equivocidade) com a história (com a intamponável contradição da luta de classes) e o inconsciente (lugar em que o sujeito falha e não se sustenta como dono absoluto de sua morada, e de sua morada de dizer).

Tenho pensamentos que não posso traduzir em palavras (...) Mas para o meu melhor pensamento não são encontradas as palavras7.

As anotações de Clarice apontam o imperativo da solidão diante do indizível na tecelagem de sua invenção, matéria com a qual a autora tece os narradores denominados como o autor, Ângela e a si mesma, que Ferreira8 analisa da seguinte forma:

(...) temos nele, pois, a escrita de uma autora, Clarice Lispector, que cria um personagem, o Autor-narrador, que por sua vez cria outro personagem, Ângela Pralini. Além desses sujeitos que fazem parte da escrita do livro, não podemos nos esquecer da amiga de Clarice, Olga Borelli, que ficou responsável por organizar os fragmentos e publicar o livro, ou seja, de certa forma ela também exerceu o poder de ‘mesclar as escritas’.9

Ao longo do Seminário 11, Lacan indica que o real é o registro que diz respeito ao impossível e ao incabível em palavras, esse inominável em torno do qual a obra de Clarice borda. É de dar um tratamento ao oco que se trata o trabalho de escrita literária. Muitos autores e artistas o fazem em suas obras, transmitem algo dessa ordem de tocar as bordas de dizer para siderar o vazio ou o buraco do humano.

Quanto à Lacan10, são várias as alegorias para ilustrar tal instância: o lugar do livro faltante na estante, o pote de mostarda e o vaso na mão do oleiro, todos fazem avançar o conceito freudiano de Das Ding, explorando-o em muitas formulações e definindo-o como instância que fica no centro, no sentido de estar excluído. Trata-se do que existe de aberto, de faltoso, de hiante, no centro do nosso desejo, e que não se completa nem se fecha, mas configura-se em tentativas desencontradas de dizer. O que não pode ser suturado, nem dito, nem tomado em palavras sustenta-se como inominável e produz lançamentos em direção a tentar encontrar o que se repete, o que retorna e nos garante retornar sempre ao mesmo lugar.

Para escrever tenho que me colocar no vazio. *Neste vazio é que existo (...) dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem outras – quais?11.

Irrealizado, intransponível, perdido, tropeço, desfalecimento, rachadura, dimensão de perda, fenda, hiância, fissura e rasgo, são muitos os modos de Lacan dizer daquilo que aponta e realiza o impossível.

O componente real inassimilável, representado por Das Ding, é bordejado pelo significante. É aquilo que do real padece dessa relação fundamental, inicial, que induz o homem nas vias do significante*12.

Então, o que está no início, no foco, é o campo simbólico, a referência ao Outro à linguagem, como se estruturando em torno de um núcleo excluído.13

Os dois autores colocam em questão que o simbólico não dá conta de abrigar e conter essa Coisa, e apenas faz o trabalho de contornar o buraco uma vez mais a cada dito. Nesse enquadre, a instância do inominável indica o que padece de significante e tal padecimento instala um efeito uma potência insistente e cruel.

Eu queria escrever um livro. Mas onde estão as palavras? Esgotaram-se os significados. Como surdos e mudos comunicamo-nos com as mãos. Eu queria que me dessem licença para eu escrever ao som harpejado e agreste a sucata da palavra.14

Na dobradiça movente de tentar-dizer e reconhecer o impossível-dizer, encontram-se os Pêcheux e Lacan que tanto se confrontaram com o abismo de formular sobre aquilo que é puro irrepresentável e, assim, permanece ausente. O que os une é a tentativa de teorizar o impossível. O que (talvez) os distancie é a necessidade de Pêcheux em criar categorias e explicações para o real, ao passo em que Lacan reconhece o quanto dele não é possível tocar, é insuficiente explicar e reclama um limite a ser suportado.

Eu, reduzida a uma palavra? Mas que palavra me representa? De uma coisa sei: eu não sou o meu nome. O meu nome pertence aos que me chamam. Mas meu nome íntimo é zero. É um eterno começo permanentemente interrompido pela minha consciência do começo.15

Clarice se depara com a morte e amarra tentativas e estratégias de dizer sobre ela, produzindo sopros de vida e pulsações simbólicas marcadas por interrogações que escorregam pela boca de três narradores. Três conta-dores, um seria insuportável. Sopro que já é muito quando se está partindo. Vida que se quer palavra e limite, dizer e impossível.

Notas

1 Borelli, O. Apresentação In: Um sopro de vida – pulsações. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. 1978.
2 Lispector, C. Um sopro de vida – pulsações. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. 1978.
3 Lacan, J. Seminário, Livro 7 – A ética da psicanálise. [1959-1960]. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008.
4 Pêcheux, M. et al. (org). Matérialités discursives. Coloque des 24, 25, 26 avril 1980 à Nanterre. Lille, Press universitaires de Lille. 1981.
5 Lispector, C. Um sopro de vida – pulsações. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. 1978.
6 Pêcheux, M. et al. (org). Matérialités discursives. Coloque des 24, 25, 26 avril 1980 à Nanterre. Lille, Press universitaires de Lille. 1981.
7 Lispector, C. Um sopro de vida – pulsações. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. 1978.
8 Ferreira, S. P. Clarice Lispector – biografema, o estranho e a letra. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. 2014.
9 Ferreira, S. P. Clarice Lispector – biografema, o estranho e a letra. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. 2014.
10 Lacan, J. Seminário, Livro 7 – A ética da psicanálise. [1959-1960]. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008.
11 Lacan, J. Seminário, Livro 7 – A ética da psicanálise. [1959-1960]. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008.
12 Lacan, J. Seminário, Livro 7 – A ética da psicanálise. [1959-1960]. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008.
13 Bispo, F. S.; Couto, L. F. S. Ética da psicanálise e modalidades de gozo: considerações sobre o Seminário 7 e o Seminário 20 de Jacques Lacan. Estudos de Psicologia 16 (2), 2011.
14 Lispector, C. Um sopro de vida – pulsações. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. 1978.
15 Lispector, C. Um sopro de vida – pulsações. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. 1978.