Enquanto o mundo vai avançando tecnologicamente e trazendo maravilhosas inovações em todos os campos do conhecimento, as Alices do nosso século caem numa toca de coelho que ainda não conhecemos tão bem.

Há uma situação caricata que deixo que viva, em regime de contrato vitalício, no meu cérebro, mesmo que não pague renda. Deixo que isto aconteça só pelo caracter burlesco da mesma. Passo a explicar.

Há um par ou dois de anos, quando eu ainda vivia em Coimbra e ensinava Português e Inglês a alunos do segundo e terceiro ciclo, uma aluna, na época, do 5º ano de escolaridade, burlou todo o nosso sistema comunicacional:

A aulinha estava dada por acabada, e a dita aluna arrumava a mochila, quando me apercebi do dicionário de inglês na mesa dela.

— Alice, quando saíres leva o dicionário à diretora, porque foi ela que nos emprestou esse.

Ela, reticente, assentiu e aceitou a enfadonha missão. Disse-lhe um “até amanhã” e saí da sala para o corredor, onde comecei a descer as íngremes escadas para o piso térreo.

Numa questão de um minuto, senti alguém a galgar a escada como se o edifício estivesse a irromper em chamas. A Alice, passando por mim, mantinha um sorriso tonto e os olhos fixos na porta de saída do andar de baixo.

— Então?

— Então o quê, professor?

— Já entregaste o dicionário?

Era impossível ter sido tão rápida.

— Sim já. - Tentou voltar-se novamente, mas lancei uma frase o mais rápido que pude. Sabia que não obteria explicação nenhuma de uma criança se não lha pedisse directamente.

— E a diretora disse o quê?

— Perguntou quem tinha ido buscar o dicionário... Eu respondi que não sabia e corri muito rápido para ela não me fazer mais perguntas!

Ri-me alto a meio do corredor, com a minha east pack preta a balançar-me nas costas. Talvez os outros professores tivessem advertido algo sobre a falta de educação, mas não pude controlar o primeiro pensamento que se formou em mim “quem me dera poder fazer isso sem ter qualquer consequência”. Ela aceitou o riso como um concedimento de liberdade e continuou a correria escadas a baixo.

Hoje, sentado à frente deste PC, relembro esse momento e penso que seria cada vez mais impossível, quanto mais andarmos para trás na linha temporal. Os meus pais jamais teriam coragem de fazer isso quando eram crianças; os meus avós nem ponderariam esse comportamento como opção, os pais deles, nem se fala... E encontro uma possível razão: as redes sociais.

A minha relativa compreensão do comportamento dela na época deve ser fruto de a minha geração ter assistido, mais ou menos de perto, ao surgimento de todas estas novas formas de comunicação. Ora, a geração delas nasceu quase com Facebook instalado.

O primeiro comboio de reflexões que surgiu na estação da minha cabeça foi imediatamente o que trazia questões acerca de como as redes sociais e a internet afectavam indelevelmente a nossa comunicação.

Temos os exemplos escabrosos de surgimento de novas palavras como amigar/desamigar e a crescente pressão de estar sempre comunicável como um dever civil. Quem nunca ouviu um "caraças do Manel que não me responde à mensagem!"?

E como último exemplo, relembrando a situação que partilhei convosco, a situação da Alice: o que foi aquilo se não um pequeno block temporário?

Claro que esta questão da comunicação foi a primeira a acudir à minha atenção, não fosse eu formado em linguagem, mas a verdade, é que não sou o típico “velho do restelo” que aqui viria comentar que estão a “assassinar a nossa língua”, nesses é que devemos dar block.

As línguas são, afinal, algo orgânico e constantemente em mutação. Se elas servem o nobre propósito de organizar a realidade, espantoso era elas não mudarem, quando a nossa realidade está a fazê-lo a um ritmo cada vez mais vertiginoso.

Respeitar as línguas passa por respeitar e aceitar estas mudanças referidas, por isso, sempre preferi perguntar aos meus alunos o que significam certas palavras que usam, ao invés de chamar-lhes à atenção. Eu era o professor que usava “bué” e expressões similares, enquanto os outros tentavam censurar a utilização de palavras do género às crianças.

A minha preocupação é outra, aliás são muitas: há a síndrome de rebanho, a polarização que as redes sociais tendem a criar na nossa sociedade, incluindo na política, a manipulação e o capitalismo de vigilância. Mas em primeira instância tenho esta pulga atrás da orelha: As redes sociais acabam por funcionar como uma chupeta tecnológica.

Um jornalista chamado Andrew Lewis disse uma vez que: “se não estás a pagar por algo (…) é porque tu és o produto”. Trocado por miúdos, o que é que isto quer dizer? Ora, nós não pagamos por redes sociais por uma simples razão, a nossa atenção é o produto que está a ser vendido. Está a ser vendido pelos líderes de redes sociais aos anunciantes.

Sendo nós um produto, o que é que as redes sociais querem? Que sejamos o melhor produto possível para os anunciantes. Isto faz com que eles nos mostrem aquilo que nos possa ser de maior interesse. As nossas redes sociais concordaram connosco em tudo para nos manter presos à tela, e essa atenção constante é deliciosa para os anunciantes.

Quanto mais ficamos na tela, mais vemos que tudo nos dá razão. Porque raios haveríamos de lidar com contrariedades na vida real? Pessoas a dizerem-nos que o nosso partido político é mau, se só nos aparecem coisas boas sobre ele no Feed; dizerem-nos que a terra é redonda quando todas as redes sociais nos dizem o oposto; perguntarem-nos quem foi buscar o dicionário se, nas redes sociais, só nos dão o que precisamos de “ouvir” sem perguntar nada de nós?

E é nisto que "os velhos do restelo" ainda preservam um pouco de razão: estar com chupeta até muito tarde faz-nos mal aos dentes. Como havemos de comer comidas mais duras mais tarde?

E acreditem, a vida está pronta a dar-nos comida dura de roer.

E finalizo com um: é escusado virem-me dizer que dão tablets às vossas crianças porque elas aprendem muito, porque serei forçado a concordar, mas também terei que responder: sobre quê? E sei que em nenhuma resposta vou obter um “sobre interacções humanas” que, com toda a certeza, será o único ramo do conhecimento que vai continuar a ser relevante até nos extinguirmos.

E para a Alice, que espero um dia vir a ler isto, e que, de facto, não se chama Alice: não podemos bloquear pessoas na vida real, porque isso um dia nos vai causar problemas, ora vamos perder um emprego, ora vamos perder amigos, ser considerados homens das cavernas mesmo tendo na mão esta caixinha que contém em si todo o mundo...

Sabes, Alice, o mundo da tecnologia, apesar de ser um país das maravilhas, é um país onde ninguém se entende, só cá fora aprendemos a falar a mesma língua. Sei que todas as tecnologias são um luxo. Quem é que não gosta de luxo?

Talvez já vá tarde demais, mas gostava de te ensinar uma coisa que aprendi na época em que ainda conseguíamos ouvir os professores a falar na vida real. Disse-me uma vez um, de matemática, particularmente inteligente e incisivo: “a diferença entre luxo e lixo é só de uma letra”.