A publicação de Histórias Naturais em Português constitui um dos pequenos acontecimentos literários de 2023 e, o que não é costume, é um trabalho integrado num conjunto maior de publicações que, ao longo dos últimos anos, tem disponibilizado aos leitores o conjunto das obras maiores do autor torinense (1919-1987).
Primo Levi tornou-se desde a publicação da sua obra de estreia, para sempre associado ao seu nome, 'Se isto é um Homem', um autor de referência da memorialística europeia contemporânea, um daqueles casos em que o termo tantas vezes abusados «indispensável» se usa com preceito, mais a mais numa memorialística muito particular e extrema, a dos campos de concentração nazis.

Sobrevivente de Auschwitz e um dos seus primeiros (e maiores) narradores de valia literária e não estritamente documental, Levi conheceu bem, e reflectiu muito, sobre as incompreensões, equívocos e silêncios em torno da vida e morte no Lager. Talvez pela sua formação científica (como químico), talvez por temperamento, a sua escrita contida, precisa e sensível contrasta com a brutalidade daquelas experiências e, mais importante, com a maioria dos relatos dessa realidade.

Quando estas Histórias Naturais foram publicadas em Itália em 1966, foram-nos sob o nome de Damiano Malabaila, um pseudónimo sugerido pelo seu editor. Esta circunstância explica-se pela viragem literária que o livro documenta e que poderia desconcertar o público que, nos anos anteriores, conhecera Levi por 'Se isto é um Homem' e por 'A Trégua', duas obras saídas directamente da vida no campo de concentração. Essa dimensão da sua obra é sem dúvida a maior, como o iriam comprovar títulos como 'Os que Sucumbem e os que se Salvam' ou 'Auscwhitz, cidade tranquila'.

Ora, apesar de um ou outros dos contos deste livro remeterem para essa temática (maxime «Borboleta Angélica», já disponível em Português numa edição brasileira), este conjunto de contos é inteiramente diverso. O tom é mais distendido, mesmo se a escrita não perde nenhuma da sua elegância, e os temas remetem apra o universo da ficção científica, que aqui é um termo que se aplica particularmente bem: ficção por ser uma obra literária de um escritor de pleno direito e científica por fazer uso permanente da sua formação como químico. Mais sistemático ainda do que aqui será uma ficção científica que reencontraremos em 'O Sistema Periódico' e em 'A Chave de Luneta'. Será provavelmente a feição mais «acessível» da Obra de Primo Levi, conjugando aspectos biográficos não limitados à condição concentracionária, retratos sociais da Itália (e não só) e percepções agudas sobre os efeitos da ciência e da técnica na vida contemporânea. Em Histórias Naturais talvez seja nos contos em que vai aparecendo a personagem do Sr. Simpson, sintomaticamente um americano, que isso se torna mais evidente. Num deles («A medida da beleza»), a propósito de um aparelho que mediria a beleza humana, a voz do narrador observa:

Insisti no que considero ser o fenómeno mais alarmante da civilização actual, ou seja, que até o homem médio, hoje, pode ser afinado nos moldes mais incríveis: podemos fazê-lo acreditar que os móveis suecos e as flores de plástico são belos, e apenas estes; os indivíduos loiros, altos e com olhos azuis, e apenas estes; que só é bom um determinado cirurgião, só é depositário da verdade um determinado partido; afirmei que, no fundo, não é justo desprezar uma máquina somente porque esta reproduz um procedimento mental humano. Mas a minha mulher é um caso extremo de educação crociana: respondeu «pode ser», e não me parece que a tenha convencido. (p. 176)

Multiplicar exemplos seria fácil, como no caso da discussão da clonagem que encontramos em «Encomenda a Preço Módico» e em «Algumas Aplicações do Mimete», nos quais reaparece o personagem Simpson. «Cladonia Rapida» seria também um caso evidente disso. Sem recorrer a lugares e tempos remotos, sem sobrecarregar a escrita com referências tecnológicas credibilizantes, estes são contos de uma ficção científica despojada, propositadamente quotidiana e até paroquial, que, hoje, ultrapassada que em parte foi pelas ovelhas Dolly que Levi já não chegou a conhecer, podemos ler com uma sensação de inquietante estranheza (passe o freudismo de bolso) e genuíno divertimento literário. Convém aproveitar, antes que alguma «Censura em Bitínia» literal se lembre de reescrever a prosa modelar de Levi para não mais poder ferir susceptibilidades hodiernas.

Primo Levi será, sempre, um autor ligado ao tema do Holocausto e suas decorrências (incluindo no seu único romance 'Se não agora, quando?'). Não obstante, a sua grandeza literária e intelectual nunca se esgotou nesse único domínio. Disso mesmo dá nota o Centro Internacional de Estudos Primo Levi, em Turim , que se dedica à preservação e divulgação da sua Obra. Para os leitores, essa riqueza transparece nitidamente nestas páginas – bem como nos já referidos 'A Chave de Luneta' e, sobretudo, 'O Sistema Periódico' – agora disponíveis ao público português numa edição cuidada e livre de aparatos de enquadramento excessivo. É difícil fazer justiça à grandeza de um Autor como Primo Levi, mas este é um belo modo de tomar contacto com ela.

Primo Levi, Histórias Naturais, tradução de Diogo Madre Deus, Publ. D. Quixote, Lisboa, 2023.