O título desse artigo, que vem a se desdobrar em dois, pega carona nos estudos da pesquisadora Guacira Lopes Louro1, quando esta afirma que é necessário:

Deslocar a mulher das referências e das notas de rodapé (onde ela era entendida como um desvio da norma masculina ou como ‘minoria’) e incorporá-la ao corpo dos trabalhos, [...] constituí-la como o sujeito-objeto dos estudos.

Ao longo da história da arte, as mulheres foram pintadas e idolatradas. Contudo, pouco é dito sobre as mulheres por trás da tela, apesar de suas contribuições inegáveis para o mundo das artes visuais.

Muitas mulheres artistas foram apagadas da história da arte tradicional; isso se torna muito evidente quando pensamos no ensino de História da Arte e o quanto ele é centrado, ainda nos dias de hoje, em uma perspectiva masculina. A grande maioria dos artistas famosos são homens, muitos dos quais são descritos como mestres das artes. O uso da palavra mestre demonstra que mesmo a linguagem é usada para promover a ideia de que um homem é o único gênero que pode ser bem praticado e respeitado nesta área.

A ideia de que as mulheres só devem ser vistas e admiradas por sua forma física ou beleza e não vistas como artistas é o tema central do trabalho das Guerrilla Girls. Este grupo de artistas ativistas feministas protestou contra a falta de artistas femininas no final do século XX. Em sua primeira intervenção em um museu, o grupo destacava as desigualdades entre artistas femininos e masculinos, chamando a atenção para estatísticas: apenas 4% das pinturas do Metropolitan Museum of Art eram produzidas por pintoras, enquanto 72% dos nus na galeria eram femininos.

A ideia de que as mulheres eram boas o suficiente para serem pintadas, mas não para pintar, foi muito bem explorada por Lynda Mead2 que argumenta que a representação do feminino em uma forma nua está no centro da arte e é visto como a culminação visual da iluminação e da estética, enquanto nas margens da arte se move em direção ao obsceno.

Por essas e outras razões, algumas historiadoras, críticas de arte e artistas feministas se recusam a participar de instituições ou exposições de viés “masculino” para não contribuir com um discurso que elas veem como inevitavelmente comprometido e baseado em noções esmagadoramente “masculinas” de poder e domínio. Para tomar um exemplo de centenas, a noção de que existe um “cânone”: Quem disse que há um cânone? Quem o define? Com que critérios?

A visão de que as mulheres foram sistematicamente apagadas da história do mundo da arte é muito bem ilustrada em um ensaio de Linda Nochlin3 intitulado Por que não houve grandes mulheres artistas?. Nochlin questionou a validade da própria ideia de grandeza – do gênio autônomo associado a artistas e obras-primas masculinas. Ela se recusou a refutar a questão no título do ensaio, propondo uma série de artistas igualmente grandes, o que só reforçaria as hierarquias existentes; em vez disso, ela identificou meticulosamente as desigualdades de gênero – algumas óbvias, outras codificadas – embutidas na produção e recepção da arte: em academias de arte, sistemas de patrocínio, propriedade, coleções e exposições de museus. É um ensaio pioneiro tanto para a teoria da arte feminista e indica a mudança social que estava começando a ocorrer na época. Mesmo após 45 anos de sua publicação, seu ensaio continua extremamente atual. No entanto, qual é o contributo do feminismo para a arte?

Vale ressaltar que, quando falamos em arte feminista, não podemos classificá-la como um estilo, como o impressionismo ou o cubismo, e nem a vincular a um meio específico, como pintura ou escultura. A arte feminista desafia as convenções artísticas e abraça múltiplas mídias, através das quais expressa críticas às desigualdades estruturais e ideológicas em relação a gênero, sexualidade, raça, classe e nacionalidade, ao mesmo tempo em que propõe soluções alternativas e experimentais. Em outras palavras, a arte feminista é um campo de prática e investigação que não é nem simplesmente social nem estético, no qual os emaranhados de forma e ideologia, representação e política são questionados, revirados e refeitos.

À medida que uma nova onda do movimento feminista começou a crescer nas décadas de 60 e 70, as mulheres artistas se voltaram para o campo então desconhecido da performance. Era um campo novo, uma técnica de arte que ainda não estava sob o domínio de homens. Adotar um novo meio significava maior liberdade para experimentar, sem medo de comparação com as gerações de artistas masculinos que os precederam.

A arte performática pode ser difícil de definir, mas é fácil apontar para duas mulheres de grande nome que trabalham dentro do meio: Marina Abramović e Yoko Ono. Havia, no entanto, uma série de outras artistas femininas da mesma geração que desempenharam papéis instrumentais na formação do meio. Em seus primeiros anos, a performance tornou-se uma parte central do Programa de Arte Feminista do Instituto de Artes da Califórnia, cofundado pelas artistas e educadoras Judy Chicago e Miriam Schapiro em 1971. Uma das obras centrais do programa foi a instalação Womanhouse.

Outra artista particularmente interessante é a austríaca Valie Export (propositalmente grifado em maiúsculas) que mudou seu nome em 1967, a fim de renunciar à identidade patriarcal anexada a ela por seu pai (nome de batismo) e seu ex-marido (nome de casada). A partir desse momento, ela se tornou uma marca, batizada como um cigarro barato. Suas primeiras performances envolviam interação direta com o público. Em Tapp und Tastkino (tap and touch cinema), a artista anexou uma caixa de cinema com cortina em seu tronco nu e ficou na rua. Quem passava por perto era encorajado a atravessar as cortinas e tocar seus seios.

As apresentações públicas também eram uma maneira de defender o papel das mulheres, com artistas que adotavam um estilo similar aos protestos antiguerra da década de 60. Essa adoção da performance como um campo artístico predominantemente feminino fez com que várias mulheres artistas, como Martha Rosler e Hannah Wilke, se tornassem líderes em outro campo que emergia: a videoarte.

A videoarte era um novo meio artístico muito interessante, pois fornecia uma maneira barata de registro e representação, quebrando um mundo da arte onde formas como pintura, fotografia e escultura tinham sido a norma de longa data. Isso expandiu o potencial da voz criativa individual e desafiou os artistas a se estenderem em direção a novos patamares em suas carreiras. Também possibilitou uma nova geração de artistas que poderiam nunca ter entrado no meio artístico por conta das restrições da utilização de meios tradicionais. Com a velocidade de dobra ao longo dos últimos cinquenta anos, o vídeo tornou-se cada vez mais acessível, gerando uma evolução contínua de seu uso. Hoje vivemos em uma época em que qualquer um pode produzir videoarte de alta definição em seus smartphones.

No próximo artigo dessa série, vamos falar especificamente sobre interseccionalidade e como ela está presente na trajetória de artistas feministas negras e latino-americanas.

Notas

1 Louro, Guacira Lopes. Nas redes do conceito de gênero. In: Lopes, Marta et al (org). Gênero & Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, p. 8, 1996, p. 7‐18.
2 Mead, Lynda. The Female Nude: art, obscenity, and sexuality. Florence: Routledge, 1992.
3 Nochlin, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? São Paulo: Aurora, 2016.