[É] necessário ter um talento criador para espetar a frase na região do sublime. Camilo Castelo Branco.

(Cenas da Foz (1857))

De facto, sem isso, como bem o disse o nosso primeiro profissional das Letras, ei-los a “asnea[r] de modo que vence[m] o passo que vai do sublime ao ridículo” (Cenas da Foz, 1857)…

Di-lo com autoridade! Autor de um universo ficcional a chiaroscuro, entre a luz das suas estrelas propícias e do amor de salvação e as sombras das suas estrelas funestas e do amor de perdição (que consagra em títulos), o riso e as lágrimas, a comédia e a tragédia, onde a sua se vislumbra, mas também se confessa por entre as dobras novelísticas, sinalizando o mito obscuro e pesado de uma maldição rogada nas escadas da forca (1859). Tudo banhado pelo sfumato da indecidibilidade do seu discurso entre verdade e ficção (declaradas e/ou insinuadas) e sustentado pelo poderoso e visceral ‘grão da voz’ camiliano narrador de coisas que só eu sei (1853)…

Na via láctea contrastiva da sua ficção, evidenciam-se algumas coordenadas com destaque para a que aqui me ocupará: o desconstrucionismo avant la lettre.

A pena camiliana combina cânone e paródia1 de modo magistral. Entre textos, no mesmo texto e, por vezes, na mesma imagem: o modelo ficcional do segundo Romantismo português concretizado em Amor de Perdição (1862) consagra as sementes da sua subversão (a verdade e a fuga a ela, o drama e a cena cómica) e é matéria de comentário e paródia até no insinuado curso de escrita criativa romântica das Vinte Horas de Liteira (1864), workshop insuperável antes da invenção dos workshops...

Vou-me a (aceitem-me o mimetismo…) a dois exemplos de como

O romance, Senhora, é a mais profícua das farmácias, porque neste laboratório douram-se as pílulas com maravilhosa limpeza. O romance, caldeado na forja onde Voltaire açacalou as anuas com que feriu no coração o “ridículo” de V. Exa., será, se me não engana o muito amor humanidade, um sudorífero por meio do qual faremos transpirar as muitas fezes que V. Ex. traz no sangue, e das quais se originam muitos miasmas de febre da pouca vergonha, para a qual não há quarentena possível, nem conselho de saúde, porventura o mais necessitado, na presente conjuntura, de ser esfregado com as baetas da zombaria2.

(Cenas da Foz (1857))

…quando os exemplos saltam como camarões em terra seca.

(Camilo Castelo Branco. Cenas da Foz (1857))

Alegadamente, o primeiro volume de uma série de doze intitulada Solemnia Verba. A expressão, em Ovídio, referia palavras pronunciadas em momentos solenes, Alexandre Herculano intitula assim um dos seus opúsculos3, Antero de Quental e Júlio de Castilho, sonetos, João Penha subintitula outro4, Luís de Freitas Branco, o seu Poema Sinfónico - Depois de uma leitura de Antero de Quental (1950-51) e José Barata-Moura um seu ensaio5.

Segue-se a explicação em subtítulo: "Última palavra da ciência. O X de todos os problemas do coração. Obra importantíssima para todos os sexos, masculino, feminino, e neutro, e especialmente para as cozinheiras. Em doze volumes, sendo o primeiro: Cenas da Foz". Sendo certo que apenas dois livros se reúnem neste volume: A Sorte em Preto e Dinheiro.

A autoria declarada é de “João Júnior (pseudónimo de Camilo Castelo Branco)”, “sócio da Filarmónica e Irmão da Ordem Terceira de S. Francisco”, “em quem a Europa reconhece um espírito superior e mais um bocadinho”(p. 42).

Em suma, “palavras solenes” (Solemnia Verba) anunciando uma série novelesca incumprida, um autor fantasma com contraditório estatuto de festa e religião, uma obra dedicada a categorização sexual insólita (as cozinheiras) mesmo no quadro de hoje (com as dezenas de hipóteses do Facebook), um memorial a um lugar com cenas “que tanto podiam ser de S. João da Foz, como de Freixo-de-Espada-à-Cinta” (“Juízo Crítico da 1ª edição”), um livro sem “doutrina, palavra, frase, ou vírgula, que destoe dos maus costumes da época em que é escrita” (“Juízo Crítico da 1ª edição”), a “última palavra da ciência” sem ciência alguma. Acresce a “Dedicatória” insólita “à Espécie Humana, inclusive os Barões”.

Além desta abertura offenbachiana, toda a novela é atravessada pela descontrução de modelos românticos que vão sendo postos em cena, em especial no que respeita ao processo amoroso (aqui, sem afecto…). Bastaria recordar o modelo da carta de amor, aqui parodiada na elaboração da que se oferece “como norma aos amadores das Hermenegildas”: escrita tornada ininteligível pela “embrulhada” de “asneiras” e “disparates” visando provocar o encontro esclarecedor (e a conquista), já que “[nada] lucr[a] [o candidato] com a correspondência epistolar d[a] mulher”(pp. 31-34).

E a recomendação de que “Todo o conquistador deve ter um arsenal bem fornecido de bombas fraseológicas” (p. 34), pois é a palavra que conquista as mulheres… sendo que aos pais conviria mencionar um “oitavo avô” de uma genealogia criativamente imaginada por um certo “Miguel das Infusas”, amigo de um Pantaleão e “capaz de [lhe] descobrir um joanete que ele tinha no pé-esquerdo” (pp. 38-39) …

Enfim, nesses e noutros modelos textuais, João Júnior (aliás, Camilo), confessa:

Entre parêntesis. Este estilo hoje é rançoso, e qualquer caixeiro o escreve sobre o mostrador, entre uma ceira de figos de comadre e três achas de pau campeche; naquele tempo, porém, em 1826, era necessário ter um talento criador para espetar a frase na região do sublime. Eu fui um dos apóstolos deste estilo; e vanglorio-me de ter feito escola. Vieram depois os imitadores, sem crítica nem gosto e asnearam de modo que venceram o passo que vai do sublime ao ridículo (pp. 32-33).

E, quando o objectivo era realmente casar, conviria, ainda, seguir um modelo de comportamento bem protocolado:

ser admitido ao grémio da família; dar ao /…/ namoro um ar de honestidade boçal; cabecear com sono todos os dias, meia hora ao pé da noiva; jogar a bisca de nove com [a futura] sogra, e representar, enfim, de palerma até ao dia em que se cruzarem definitivamente as raças (p. 41).

Contrastando com esse amor de afecto desfeito, há o outro, que o narrador (ou Camilo?) diz ter vivido, fonte de poesia:

Rompia a manhã no horizonte purpurino do mar, quando eu saltei do leito da insónia para o meio da rua. Senti que era poeta: alvoreceu-me nessa madrugada o furor das rimas, e, sem vaidade, confesso que escrevi de uma enfiada vinte e tantas quadras, terminando todas por Meu amante coração.

É realmente um vácuo na história da poesia moderna em Portugal a perda lastimável do meu primeiro jacto métrico(p. 49).

Amor despertado num primeiro olhar, cujo “magnetismo /…/ col[a] os pés à areia corno os da estátua do idiotismo!”(p. 52). Sendo certo, também, que, quando a decepção espreita na relação, arrasta com ela um “motim intestinal” com “os intestinos a ressoar uma sinfonia de rugidos. que devia ser a da abertura de uma opera muito séria” (p. 50). Enfim, (des)venturas do amor…

Fico por aqui e continuarei com outra novela…

Notas

1 No duplo sentido do conceito: o da sátira, dialogismo e carnavalização (Mikhail Bakhtin. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, 1941); o da revisitação, reescrita, travestimento (Linda Hutcheon. Uma Teoria da Paródia, Lisboa, Edições 70, 1989).
2 Camilo Castelo Branco. Solemnia verba, Lisboa, Companhia Editora de Publicações Ilustrada, s.d.; “Dedicatória”, pp. 8-9. Todas as citações desta obra serão retiradas desta edição e localizadas no corpo do texto por comodidade.
3 Alexandre Herculano. Solemnia verba: cartas ao senhor A. L. Magessi Tavares sobre a questão actual entre a verdade e uma parte do clero. Lisboa (Portugal): Imprensa Nacional, 1850.
4 João Penha. “Ao Espelho” in Novas Rimas, Coimbra: França Amado Editor, 1905, pp. 311-312.
5 José Barata-Moura. “Solemnia Verba. Em jeito de desabafo (in)tempestivo”, Philosophica 2, Lisboa, 1993, pp. 3-9.