O Princípio de Karenina, de Afonso Cruz, é um livro de paisagens de alma. É um livro de pessoas, de ser e do ser, da proximidade e da distância. É um livro de feridas e das muralhas que criamos e destruímos através delas.

Somos seres humanos imperfeitos, repletos de memórias, de relaçoes com os outros que fazem de nós mais pessoas também.

As melhores paisagens são feitas de pessoas. E melhor do que as pessoas são os amigos.

Num mundo de humanidade e de tantas vezes ausência dela, é urgente (re) pensar esta escolha diária de sentimentos, se é que os escolhemos, como armas e sonhos.

A minha única arma era a teimosia de um sonho (...) O amor era cheio de janelas abertas, de correntes de ar. A abertura da janela tornou-se cada dia menos óbvia, como uma hipersensibilidade cada vez maior às «correntes de ar». Um medo do que está fora, um dever exagerado de nos protegermos de quase tudo. A construção desse amor aberto ao desconhecido, e pronto a criar um edifício maior, transformou-se numa procura constante de solidificação de ideais, de medos, de distâncias, de fronteiras. O que é que respiramos a seguir?

Talvez pelo medo no fim de mais um dia, e pela esperança que dele advém, semelhante a todos: Queremos que fique tudo bem. Tememos a dor, que nos constrói também, que cria distâncias.

Podemos viver dentro de uma muralha, não sair dela, mas gastamos a distância com quem partilhamos o quotidiano. Ou podemos sair dessas muralhas, esbanjando a distância , deslocando-nos, física ou mentalmente. Ao fazê-lo, aproximamo-nos das pessoas de quem estamos fisicamente longe.

Como é que se esbanjam distâncias? Como é que se destroem muralhas? Como é que nos aproximamos uns dos outros, sem dor? Não o fazemos. Porque «o amor corrige o mundo», mas também dói muito. Todos os dias abrem-se feridas, nas nossas casas, cidades, países. No mundo. E o processo de cicatrização pode ser muito lento, demorado.

Existem ainda as dores que nem passam, que vivem connosco para sempre e que aprendemos a melhor forma de as trazer connosco, de lidar, de viver e de um processo de aceitar.

Nesse processo, há dor e alegria, mas não o estado de euforia permanente. As pessoas felizes não são as que vivem a abanar a cauda. As pessoas felizes choram, temem, caem, magoam-se, gritam e esfolam os joelhos (...)

Somos de facto, como explicou Afonso Cruz numa entrevista passada ao Observador, uma mistura. Somos uma junção de tons. Precisamos uns dos outros para construir uma imensidão de cores para além das três primárias.

Precisamos, porém, de destruir muitos muros para criar, para mudar. Precisamos de abrir janelas, portas, no limite, apanhar algumas correntes de ar. Nessa abertura abdicamos da diferença como imperfeição, para que se dê um tal «desequilíbrio» da felicidade.

O livro de Afonso Cruz ensina-nos, de facto, a desequilibrar a felicidade, a recomeçar. Ensina-nos a abraçar, a ter esperança porque, na verdade, tudo começa a todo o instante. O Universo não tem centro, assim como não tem começo. Todos os lugares são centros e todos os instantes são começos.

E mesmo que nesse recomeço esteja ainda um sinal de dor, talvez aprendamos mais tarde que essa cicatriz pode mesmo salvar-nos a vida. Fazer de nós aquilo que somos. Viver com todas as feridas. Espero que aprendas a viver com as feridas que fazem de nós formas imperfeitas, famílias imperfeitas, diferentes, cada um à sua maneira.

Esperamos aprender todos os dias a recomeçar, a abrir janelas. A encurtar distâncias.