O jogo era simples, consistia em atirar uma garrafa vazia de cerveja ao ar e, de seguida, com a mesma mão, atirar outra garrafa de cerveja vazia tentando acertar na primeira. O objetivo era partir pelo menos uma das garrafas. Jogo simples mas de complexa execução, é preciso destreza física e pontaria. E tempo livre, ócio, disposição perdulária e benevolente. Era o jogo preferido do meu tio Zé Manel quando fez a tropa na Guiné-Bissau, no início dos anos 70.

Os homens da geração do meu pai e dos meus tios tiveram de ir à guerra. A guerra que uns chamavam de Colonial (os opositores ao regime), do Ultramar (os apoiantes do regime ou apolíticos) e de Libertação (os guerrilheiros que lutavam em África pela descolonização). Foi uma guerra que durou cerca de 13 anos, que causou milhares de mortos e sequestrou o futuro de milhões de pessoas, brancas e negras, europeias e africanas, homens, mulheres e crianças. Ainda hoje é hábito classificar esta guerra como uma ferida aberta na sociedade portuguesa.

Nas artes, já houve inúmeros mergulhos no trauma pessoal dos soldados que involuntariamente, inconscientemente, negligentemente, deixaram as suas vidas pacatas na Europa e foram para as selvas africanas, de G3 na mão, matar, destruir ou, simplesmente, evitar morrer, evitar perder a alma. Jovens, pouco mais que adolescentes, fardados com uma autoridade nacionalista e com ordem para disparar, tirar vidas, impor uma política que não conhecem ou mal compreendem.

O meu pai e os meus tios não falavam muito desses tempos (normalmente, cada soldado passava 2 anos das suas vidas no ultramar). Quando se reuniam e bebiam uns copos, nas festas da família, ainda deixavam escapar um ou outro pormenor: um aperto que sentiram na picada aquando duma emboscada, a memória dum camarada morto por uma mina e, sobretudo, o tempo perdido, a espera, um nada para fazer. Não eram bons contadores de histórias, simplesmente relatavam os factos.

O meu pai era sempre o primeiro a calar-se ou a mudar de assunto. Como se uma memória dolorosa de repente lhe tolhesse o gesto, lhe roubasse o fôlego. Dele só consegui saber que: a) apanhou um tiro de raspão numa perna durante um tiroteio e que só reparou nisso horas depois, quando lhe disseram que tinha as calças sujas de sangue, b) partiu um dente quando um jipe em que ele seguia pisou uma mina e foi projetado para uma valeta e, c) deu aulas de português a crianças negras e a camaradas analfabetos do seu pelotão (tenho recebido um Louvor por isso).

Do meu tio Zé Manel registrei mais coisas. A saber:

  1. O meu tio Zé Manel era mecânico de automóveis e nunca entrou em combate. Trabalhava nas oficinas de um quartel do exército português perto de Bissau (Guiné-Bissau). À noite, depois do serviço, podia passear pela cidade.

  2. Nos seus tempos livres, o meu tio Zé Manel conseguiu recuperar um Mercedes que comprou muito barato na sucata e que fora o carro oficial do comandante do quartel. Naquela altura, os oficiais do exército português faziam-se transportar em Mercedes-Benz Ponton 180B. Presumo que o Mercedes dele fosse desse modelo.

  3. O meu Tio Zé Manel passou a usar esse Mercedes nos seus passeios pela cidade e era muitas vezes confundido por alguém importante (um oficial superior do exército). Ao ponto dos soldados por quem passava lhe “baterem a continência”. Facto que, ao mesmo tempo, embaraçava e divertia o meu Tio Zé Manel.

  4. Por vezes, nos seus momentos de ócio, ele e os camaradas levavam uma grade de cerveja para um descampado e competiam no jogo explicado no primeiro parágrafo deste texto.

E, basicamente, foi isto que eu aprendi da minha família sobre a guerra (Colonial, do Ultramar e de Libertação). O suficiente para a minha imaginação se encarregar de preencher os espaços vazios e construir uma experiência. A minha. Vezes sem conta me imaginei a viajar pelas ruas de Bissau (que nunca visitei) num Mercedes restaurado. E a jogar às garrafas de cerveja (o meu tio Zé Manel não me disse que nome deram a esse jogo e eu não me sinto com autoridade para o batizar). E quando me dói um dente ouço uma mina a rebentar. E quando me sinto exausto da vida, sinto um formigueiro na perna como se ali tivesse a cicatriz do meu pai. A minha herança.