O Verão já escalda e os incêncios começaram! A guerra torna-se mais brutal, anunciando um agravamento ainda…

O calor e a guerra serão os tópicos justificando as duas recomendações de leitura à beira do mar e do passado. Outroragoras que nos seduzem: uma novidade e um clássico.

1- É exactamente com um dia semelhante que abro a minha primeira recomendação de leitura:

Está um dia quente. Dom Alfonso X, o Sábio de Leão e Castela, chamava peregrinos aos que iam à Terra Santa, não aos que vinham a Roma. Sou, portanto, romeira, não peregrina. No dia de ontem percorri os sacros Santos lugares onde repousam os corpos de São Pedro e São Paulo. Neste preciso momento, caminho pelos locais onde se junta a grandeza do passado e as ruínas que a evocam. O coração ainda pulsante da Roma imperial. Vejo e sinto a aura que abarca este espaço. Observada de longe, a cidade, aérea, de cor bege, ou branco-pérola, é tocada pelos raios de sol, numa luminosidade avassaladora, que mostra como tudo é efémero. Tudo passa... Tudo passa…

Assim começa o Romance de Dom Dinis, de Natália Constâncio.1 Com uma deambulação de “romeira” que escreve na primeira pessoa pelos mais simbólicos cenários da História Europeia. Eu, em Roma, 1674. “[T] tocada pelos raios de sol, numa luminosidade avassaladora, que mostra como tudo é efémero.” E tudo termina no ocaso do dia, da vida, do sol, do par amoroso:

Ondeante, o rio espraia-se languidamente, saudando a noite que declina e polvilha as águas com uma carícia suave, humedecendo a fímbria da longa capa que traja, ornada de lusco-fusco.

Pelo meio, a investigação e a escrita de uma narradora feminina que busca, quase detectivescamente, em arquivos, chegando a dissimular-se sob hábito fradesco. Através dela, a luz de abertura infiltra-se nesse outrora que a palavra instaura presente e as figuras emergem das sombras, vibrantes: “as formas e as suas representações” em metamorfose, num tempo escoando, às vezes, lentamente, outras, com (sobres)saltos de anos e de factos, numa “sinfonia das horas, que toca ininterruptamente”.

No verbo fascinado desse eu, sopra o desejo do além do visível, do (con)sabido. Não é o imponderável e indefinido lugar do Anjo da História (Walter Benjamin), nem o espírito dela (António Cândido Franco), mas o lugar de uma figura de narradora anelante dessa medieval e régia versão da história de Eros e Psique protagonizada por Dinis e Isabel e perspectivada por si, “romeira” como o fora Isabel e, por fim, “corcunda” como o de Notre-Dame (Victor Hugo). O ponto focal é deslizante: começando e terminando com a romeira o ciclo narrativo, mas percorrendo um itinerário de passos da vida dessa dupla régia e amorosa, de Dinis a Isabel, de Dezembro de 1224, até 7 de Janeiro de 1325.

Viajando na ficção até ao “indiscernível”, a palavra deixa de ver o que se via e passa a fazer ver o que não se via. Mais rigorosamente: faz ler. Na icónica e identitária Torre do Tombo. Fólios sem cota, não ‘tombados’ , mas aqui para memória futura, outra, não a oficial, mas a que nos fraterniza no encerramento do romance.

Retratos diferentes se sucedem na investigação da romeira: do par Dinis/Eros e Isabel/Psique no diálogo das artes, amorosamente, modulados por poesia e música nas origens trovadorescas da nossa literatura, aproximados pela vida e pelas afinidades electivas (Goethe); do que termina com o capítulo “De Como Um Anjo Do Senhor Levou Consigo A Alma D’el-Rey Dom Denis”; e de tantos outros, alguns dos quais constantes da bibliografia final.

A voz desse “Anjo do Senhor” apaga-se com a vocalização conclusiva “Finis. Laus Deo”, celebrando a História, o Mito, o Amor, a Vida & a Morte e os seus protagonistas. A da nossa narradora prolonga a despedida na contemplação das metamorfoses do tempo nas paisagens “e no rosto dos homens, cujos cabelos de ébano, de fogo ou de oiro se transformam em prata”. Suspensa na “sinfonia das horas” em que se projecta…

2- Recuo no tempo de escrita e avanço no da ficção, viajando da Península Ibérica para a Itálica, onde o verão se avizinha e a guerra acontece.

Passo à segunda sugestão de leitura: O Leopardo (publ. póst., 1958), de Giuseppe Tomasi di Lampedusa.2 O cenário é a Itália do Risorgimento, país emergindo efabulatoriamente de uma península feudalmente recortada e varrida pela guerra civil, convulsionada pela decadência da aristocracia e pela ânsia das outras classes (burguesia e povo) arrastadas pela euforia de Garibaldi.

A moldura ficcional sinaliza o réquiem por uma comunidade tradicional que a revolução transformará para sempre.

Tudo começa num ritual de missa que sugere a humanização dos deuses pintados nos tectos e paredes, descendo das nuvens e iniciando o seu itinerário na terra dos homens, itinerário de morte anunciada pelo réquiem.

Tudo termina sob o signo profano do ‘funeral’ insólito dos restos do cão do Príncipe:

“Poucos minutos depois, o que restava de Bendicó [o cão] foi arrojado para o canto do pátio que o carro do lixo visitava todos os dias. Durante o voo, janela abaixo, a sua forma recompôs-se um instante: dir-se-ia dançar no ar um quadrúpede de longos bigodes, e a dextra anterior erguida parecia amaldiçoar. Depois, a paz tornou a cair sobre um montículo de poeira lívida.” (p. 213)

No centro desta moldura assimétrica de désenchantement du monde (Marcel Gauchet), está o Príncipe de Salina no seu gabinete-laboratório-observatório, com as insígnias do conhecimento, qual Anjo da Melancholia I (1514) de Durër: observa, acompanha, comenta e prefere morrer com o seu velho mundo…

E é esse aristocrata que nos oferece, a mais espantosa síntese de uma hermenêutica da História:

“Tudo isto não devia durar; mas vai durar e sempre; o sempre humano, bem entendido, um século, dois séculos...; depois, será diferente, mas pior. Nós fomos os leopardos, os leões: os que hão-de substituir-nos, os chacais, as hienas; e todos nós, leopardos, chacais e ovelhas, continuaremos a considerar-nos o sal da terra.” (p. 144)

E será através do seu duplo jovem, o sobrinho Tancredi, que teremos a lição da estratégia de sobrevivência da espécie e da conservação da sua supremacia combinando Darwin e Maquiavel:

“Se nós não estivermos lá, eles fazem uma república. Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude.” (p. 23)

3- Encerro as sugestões e constato que o Príncipe de Salina foi oracular: “/…/ um século, dois séculos /…/ depois, será diferente, mas pior.”

Ligo a televisão e vejo as notícias: guerra na Ucrânia, incêndios em Portugal, crise e corrupção… “o sal da terra”…

1 Natália Constâncio. Romance de Dom Dinis: El-Rey que (nom) fez tudo quanto quis, Lisboa, Colibri, 2022.
2 Por comodidade, recorro ao ebook online da edição da Bertrand, s. d. e com tradução de Rui Cabeçadas.