As palavras abaixo são as de um homem saturado com o padrão de masculinidade que conhece, palavras estas dirigidas para os demais homens de sua cultura. Estando em um contexto de pandemia, onde a violência contra a mulher recrudesceu, vale a pena nos embrenharmos nelas para refletir:

Tenho fingido ser um homem que não sou a minha vida inteira. Finjo ser forte quando me sinto fraco. Confiante quando me sinto inseguro e forte quando estou triste. Mas eu estou cansado de fingir. E posso falar que é exaustivo tentar ser homem o suficiente o tempo todo. Desde que me lembre, me falavam que tipo de homem deveria ser. Como uma criança, tudo que queria era ser aceito pelos outros meninos. E como falavam que o homem é o oposto da mulher, ou eu rejeitava e escondia algumas qualidades ou seria rejeitado. Como homem vim dizer que isso é errado, tóxico e precisa acabar. Não tenho vontade de me encaixar nessa definição de masculinidade. Porque não quero ser só um bom homem, quero ser uma boa pessoa. E acredito que o único jeito disso acontecer é se os homens não só aprenderem a aceitar essas qualidades que eles têm e que nos disseram que eram femininas, mas também aprenderem com as mulheres que as possuem. Assim que tive a coragem e força para dividir minha vergonha, ela passou. ... Tenho um desafio para todos os homens. Desafio a usarem as mesmas qualidades que fazem vocês se sentirem homens para mergulhar dentro de vocês mesmos, sua força, sua coragem, sua resistência... Podemos redefinir o que elas significam e usá-las para explorar nosso coração. Você é corajoso o bastante para ser vulnerável? Você é forte o suficiente para ser sensível? Para chorar quando está triste ou feliz, mesmo que isto te faça parecer fraco? Você é confiante o bastante para escutar sua mulher, mesmo se o que ela estiver falando vá contra você?

Em sua profunda sensibilidade, este homem, que chamarei de Henrique, nos fala que para serem de fato fortes, os homens precisam: - ter a coragem de expor suas fragilidades, assumir suas vulnerabilidades para então conseguir dominá-las: um paradoxo, que, se vivenciado na própria pele, pode resultar em mudanças significativas (a vergonha se dissipa quando compartilhada); - agir de maneira coerente com os próprios sentimentos, sendo capaz de expressar o choro, mesmo que esta seja uma atitude contrária a tudo que se espera de um homem em nossa cultura; - ter um ego forte o bastante, capaz de deixar a arrogância de lado nos momentos em que se faz necessário escutar a parceira, mesmo que não lhe seja lisonjeiro ouvir o que ela está dizendo: neste caso a frágil superioridade masculina se esfacelaria, remetendo o homem à sua condição puramente humana.

Henrique salienta ainda que, antes de ser um “bom homem” é preciso ser uma “boa pessoa”. Ele parece querer dizer com isso que a questão de ser ‘pessoa’ antecede a questão de ser homem ou mulher. A questão de gênero torna-se secundária e as diferenças perdem o sentido quando olhamos para dentro de nós e percebemos afinal que, sentir medo, tristeza, raiva, vergonha, fragilidades de qualquer natureza (ou qualquer um dos outros sentimentos chamados positivos) são atributos humanos e que o que nos diferencia é a forma como lidamos com eles. Possuir a alma à flor da pele (um atributo considerado pela cultura como tipicamente feminino) é na verdade um privilégio de poucos e se permitir expressar isto é ainda mais raro.

A construção social, histórica e cultural dos papéis sexuais, os quais irão delinear as identidades e performances do feminino e do masculino, carregam muitos estereótipos e expectativas. Ser “o que realmente se é ” está para além de tentar agradar os outros ou de corresponder às expectativas de um grupo. O desafio que se apresenta consiste em manter uma relação aberta, amigável e estreita com a própria experiência, o que não é tarefa fácil. É comum rejeitar traços de personalidade que não são coerentes com o autoconceito ou a própria autoimagem (descrição que a pessoa faz de si mesma).

Um homem pode não tolerar a experiência de seus sentimentos ditos “femininos” e sentir-se diminuído por isso. Mas pouco a pouco, tal como se estivesse espreitando através da nesga de uma janela, pode ir contemplando estes sentimentos e reconhecendo-os como partes suas. Desta forma ele se sente mais completo quando consegue perceber que os aspectos negados de si mesmo compõem a sua totalidade. Certamente, o nosso Henrique já percebeu que um homem que chora funciona melhor, tem uma maneira mais rica, harmoniosa e fluente de funcionar no mundo do que aquele que não chora.

O homem que não chora traz um nó na garganta que não se desfaz. Ele está sempre entalado. Consequentemente funciona de maneira travada na sua relação com o mundo, além da grande chance de vir a desenvolver problemas de saúde física e mental devido à repressão de seus sentimentos.

Felizmente há algumas consciências masculinas despertas e importantes iniciativas que nos fazem crer que também “eles” se sentem incomodados com o falocentrismo e a falsa supremacia masculina que reina em nossa cultura. Assim, no Estado de São Paulo pode-se citar o Fórum de Gênero e Masculinidades do Grande ABC, constituído no ano de 2015, cujo principal objetivo tem sido articular e sensibilizar homens em defesa das políticas de gênero e pelo fim da violência contra a mulher. Neste contexto, o programa socioeducativo voltado para homens autores de violência (HAV): E Agora José?, desenvolvido por Flávio Urra e outros tem especial relevância. Já no Rio de Janeiro, o Instituto Noos desenvolveu uma metodologia específica para auxiliar profissionais da área em seu trabalho com HAV: Conversas Homem a Homem: Grupo Reflexivo de Gênero, o intuito sendo oferecer uma estratégia para “baixar a guarda” e discutir com outros homens a questão da violência de gênero.

Como um evento internacional, não poderia deixar de citar a Campanha do Laço Branco, lançada oficialmente no ano de 2001, presente em todos os continentes e em mais de 55 países, sendo apontada pela ONU como a maior iniciativa mundial voltada para o envolvimento dos homens com a temática da violência contra a mulher. A Campanha Brasileira do Laço Branco tem como objetivo sensibilizar, envolver e mobilizar os homens no engajamento pelo fim da violência contra a mulher. No Brasil, algumas iniciativas pontuais começaram a ser delineadas em 1999, por meio de atividades dirigidas a essa temática, realizadas em Recife, pelo Instituto Papai e, em Brasília, pelo Instituto Promundo, com o objetivo de ampliar cada vez mais a rede, sensibilizando profissionais e comunidades em geral para o enfrentamento e a prevenção à violência contra a mulher.

O mundo precisa mudar... e as relações entre os humanos se tornarem de fato humanas, com a barbárie cedendo lugar para a razão, a sensibilidade e o respeito ao seu quase igual.

Somos iguais na diferença.