Para quem escreve sua própria carta — mesmo que cheia de rasuras.
Recentemente, alguém me perguntou: “Se você partisse hoje, quem você gostaria que escrevesse uma carta em sua homenagem?” Minha resposta foi curta e grossa: ninguém.
Houve um silêncio desconfortável no ar. Alguns fizeram aquela cara de quem mordeu um limão, outros olharam como se eu tivesse confessado um crime contra a humanidade. Mas não, eu não estava sendo insensível. Nem dramática. Só estava lúcida.
Porque, sejamos honestos: quem conhece mesmo a gente por completo? Quem poderia traduzir, com precisão, o caos, a beleza, as pequenas vitórias diárias e as vergonhas secretas que compõem a nossa história? Eu sou a única editora da minha narrativa. Se tiver que existir uma carta sobre mim, eu faço questão de escrever com minhas próprias palavras — ainda que com erros de ortografia emocional.
O grande circo da aparência
Vivemos num mundo onde a sinceridade anda descalça e a aparência desfila de salto alto. Rede social virou vitrine de perfeição fabricada, e quem mostra vulnerabilidade é visto como “carente”, “dramático” ou, pior, “não vende bem”. Se vulnerabilidade fosse um produto, a embalagem seria neutra e minimalista, mas por dentro… ia ter muito choro engarrafado.
O problema é que, nesse jogo de performance coletiva, estamos todos cansados, mas seguimos sorrindo. E ai de quem ousar parar! A engrenagem exige movimento, exige aplausos, exige filtros — e, de preferência, nenhuma autenticidade fora do script.
Seja você mesmo — mas não tão literalmente
Você já percebeu como a frase “seja você mesmo” costuma vir acompanhada de um asterisco invisível? Tipo: “Seja você mesmo* (desde que não incomode, não critique demais, não seja excêntrico, não questione o *status quo, e por favor sorria mais).”
Esse contrato social não foi lido, mas foi assinado por muitos de nós. E então começamos a viver para agradar. A nos moldar para caber. A trocar verdades por aprovação.
Só que isso cobra um preço — e não é barato.
A arte de ser íntegro (mesmo que saia caro)
Integridade não é só dizer a verdade — é ser a verdade. Mesmo quando ela não rende curtidas, nem convites para happy hour. Mesmo quando ela interrompe aquele teatrinho social em que todo mundo finge concordar pra manter o clima "good vibes". Ser íntegro é tipo ser vegetariano num churrasco gaúcho: você vai incomodar. Vai ouvir piada. Vai ser alvo de olhares tortos e da clássica: “Mas nem um pedacinho de picanha?” E você respira fundo, sorri com dignidade e segue firme, porque sabe que não está ali para ser aceito — está ali pra ser inteiro.
A filósofa Simone Weil, que entendia de intensidade como poucos, dizia que a atenção profunda é a forma mais rara e pura de generosidade. Mas não é só com os outros que essa atenção importa — é com a gente também. Weil via a atenção como um estado quase sagrado, uma escuta silenciosa da realidade — e de si mesmo. E é só com essa escuta aberta, sem filtros e sem pressa, que conseguimos reconhecer quando estamos traindo nossos valores só para nos encaixar. Ser íntegro, então, é quase um ato místico: parar, sentir, notar onde dói, onde vibra, onde aperta o sapato da incoerência — e, apesar de tudo, escolher ser. Mesmo que isso custe a aprovação da turma do churrasco.
O dilema do camaleão
Talvez você conheça o dilema: quanto mais você tenta agradar, menos você se reconhece no espelho. Vai aceitando “só dessa vez” sorrir sem vontade, concordar sem pensar, abaixar a cabeça para manter a paz. E de "só dessa vez" em "só dessa vez", você vira um camaleão humano — ótimo em adaptação, péssimo em identidade. Você está em todas, mas não está em nenhuma. Está com todo mundo, menos com você. E o pior? A performance é tão convincente que, às vezes, você acredita que aquilo ali é você — quando, na verdade, é só um figurino social.
Mas viver se camuflando tem um custo silencioso: você vai sumindo de si. Vai esquecendo o som da própria voz, suas cores favoritas, suas vontades reais. E ninguém pode escrever uma carta honesta sobre alguém que desapareceu no meio do caminho. O problema do camaleão é que, no fim do dia, ele olha pro espelho e se pergunta: “quem é que eu fui hoje mesmo?” Spoiler: se você precisa de legenda pra se lembrar de quem é, talvez tenha algo fora do eixo.
Então, como saber se você está nesse modo camaleônico? Algumas perguntas podem ajudar a puxar o freio antes que a gente vire figurante da própria vida:
Eu concordei com isso porque realmente acredito ou só para não criar atrito?
Eu me sinto leve ou esgotado depois dessa conversa?
Eu disse “sim” querendo dizer “sim”?
Se ninguém fosse julgar, eu teria feito diferente?
Eu estou presente ou apenas performando presença?
A autenticidade não é sobre ser inflexível — é sobre ser visível por inteiro, mesmo quando isso significa desagradar, destoar ou não se encaixar. Melhor ser você do que ser um profissional em desaparecer. Afinal, camaleão é ótimo na natureza, mas na vida real, a gente merece ser visto — de verdade.
A raiz do descompasso
O psiquiatra Gabor Maté tem uma sacada brilhante sobre isso: ele diz que vivemos presos entre duas necessidades — a de sermos autênticos e a de sermos aceitos. Quando crianças, aprendemos que, para sermos amados, às vezes precisamos esconder quem somos. Trocar autenticidade por afeto. E seguimos assim, achando que, se formos verdadeiros demais, corremos o risco de perder vínculos.
Mas e se os vínculos que exigem a nossa mentira não forem vínculos de verdade? Pois é.
A boa notícia é que a autenticidade é um exercício diário, um caminho que pode ser trilhado passo a passo, com pequenas práticas que fortalecem nossa conexão com nós mesmos e, por consequência, com o mundo ao nosso redor. Aqui vão alguns exercícios que podemos incorporar no nosso cotidiano para sermos mais autênticos:
Pratique a auto-observação sem julgamento
Reserve alguns minutos do seu dia para se observar internamente. Pergunte-se: “O que eu realmente sinto agora? O que está por trás dessa sensação?” Sem se criticar ou tentar mudar nada, apenas observe. Esse exercício ajuda a reconhecer a verdade interna que muitas vezes escondemos.
Diga a sua verdade em pequenas situações
Pode ser algo simples, como expressar sua opinião numa conversa com amigos ou dizer “não” quando não quer fazer algo. Praticar dizer o que realmente pensa ou sente, mesmo em situações cotidianas, vai fortalecendo sua voz interna e sua confiança.
Reflita sobre as expectativas que você sente nos relacionamentos
Pergunte-se: “Estou sendo quem eu sou, ou quem eu acho que os outros querem que eu seja?” Reconhecer quando estamos ajustando nosso comportamento para agradar pode ser um passo importante para redescobrir nossa essência.
Cultive momentos de silêncio e solitude
Passar um tempo sozinho, longe de ruídos e distrações, ajuda a escutar melhor a si mesmo. Nesses momentos, tente se reconectar com o que é verdade para você, sem a interferência das opiniões externas.
Permita-se errar e ser vulnerável
Autenticidade não é perfeição. É permitir-se mostrar suas falhas, dúvidas e fragilidades. Experimente compartilhar uma vulnerabilidade com alguém de confiança. Isso fortalece vínculos reais, que aceitam quem você é por completo.
Anote suas reflexões
Manter um diário onde você escreve sobre seus sentimentos, desejos e conflitos pode ser um poderoso aliado para clarear a mente e entender onde você está se afastando da sua verdade.
Ao incorporarmos esses exercícios em nossa rotina, começamos a construir vínculos que não exigem máscaras ou mentiras — vínculos que acolhem nossa essência. E, assim, rompemos o ciclo em que autenticidade e aceitação parecem estar em conflito. Afinal, as relações verdadeiras florescem quando podemos ser nós mesmos, em inteireza.
A missão de tornar-se quem se é
Nietzsche, sempre ele, nos provoca com aquela ideia que dá um nó na cabeça e no coração: torna-te quem tu és. Parece simples, mas é uma missão de uma vida inteira. Porque ser quem se é exige trabalho, coragem, humildade e — talvez o mais difícil — a disposição de não agradar a todos.
Descobrir quem realmente somos e quais são nossos dons e habilidades é um processo profundo, que demanda atenção e prática. Não se trata apenas de se olhar no espelho, mas de olhar para dentro, para o que pulsa além das expectativas alheias. Uma forma de começar é fazer perguntas sinceras para si mesmo, como: “O que me faz perder a noção do tempo? Quais atividades me trazem alegria genuína? Quais momentos sinto que estou em sintonia comigo mesmo?” Outra abordagem é revisitar memórias da infância — muitas vezes, nossas paixões e talentos estão ali escondidos, antes que o medo ou a necessidade de se encaixar abafem essas faíscas.
Experimentar coisas novas também é fundamental. Pode ser um hobby, uma nova profissão, um curso, ou até mesmo voluntariado — situações onde temos a chance de perceber onde nosso entusiasmo, dedicação e naturalidade aparecem sem esforço. Observar o que os outros reconhecem em você, os elogios e os pedidos de ajuda, pode ser outro indicador dos seus dons, mas não faça do olhar dos outros a sua verdade. Cheque por você.
Além disso, a prática da autoescuta, como a meditação ou a escrita reflexiva, ajuda a silenciar o ruído externo e conectar-se com a voz interna. Ferramentas como testes de personalidade, avaliação de talentos e feedbacks sinceros também podem ser úteis, mas devem ser vistas como pontes, não destinos.
O mundo não precisa de cópias. Precisa de inteiros. Gente que não tem medo de parecer estranha. Que dança fora do ritmo, mas com alma. Que diz “não” quando todo mundo diz “sim”. Que escolhe ser fiel a si mesma, mesmo que isso custe a aceitação da multidão. Tornar-se quem se é, enfim, é abraçar a singularidade com amor e coragem — é entender que nossos dons não são apenas presentes para nós, mas para o mundo que só vai se enriquecer com a autenticidade que oferecemos.
A verdade como caminho (e como escudo)
A verdade não é uma espada. É um escudo. Não serve para ferir, mas para proteger o que é essencial.
Você já percebeu como pessoas autênticas incomodam? Elas incomodam porque são livres. E gente livre desestabiliza quem vive de agradar.
Não confunda autenticidade com grosseria, claro. Ser verdadeiro não é licença para ser rude. Mas é um convite permanente para não se trair.
Porque, no fim das contas, não há como construir paz por fora quando há guerra por dentro.
Uma carta para mim
Se eu fosse mesmo escrever uma carta para mim, talvez dissesse algo assim:
Ei, você.
Obrigada por não fingir. Por ter sido meio torta, mas sempre sincera.
Por ter tropeçado mil vezes e, mesmo assim, nunca ter se convencido a caminhar com passos que não eram seus.
Por escolher a honestidade mesmo quando ela te deixava sozinha.
Por rir alto, amar estranho e viver fundo — sem pedir licença.
E essa carta talvez não fosse linda aos olhos dos outros. Mas seria minha. Inteira. Sem edições para agradar. Sem legendas explicativas.
Aqui jaz alguém que nunca foi “normal”
Eu adoraria que essa fosse a frase no meu epitáfio. Não por vaidade. Mas por verdade.
Porque, entre tantas rotas possíveis, escolhi a que me mantinha conectada comigo mesma. Mesmo quando era mais difícil. Mesmo quando parecia solitário. Mesmo quando ninguém aplaudiu.
Ser normal é fácil. Ser inteiro, não. Mas no fim, é isso que vale.
Então, se te perguntarem: “Quem escreveria sua carta?”, considere com carinho a opção mais corajosa — você mesmo.
E se der branco, tudo bem. Às vezes, só dizer “eu fui fiel a mim” já é o suficiente.
Nota da autora
Se você chegou até aqui, parabéns. Sobreviveu a uma conversa sem máscaras. E talvez, só talvez, tenha reconhecido uma parte sua nas entrelinhas. Que bom. O mundo anda precisando de gente que se veja de verdade.
Referências
Maté, Gabor. When the Body Says No: Exploring the Stress-Disease Connection. Toronto: Alfred A. Knopf Canada, 2003.
Nietzsche, Friedrich. Assim Falou Zaratustra: Um Livro para Todos e para Ninguém. Tradução de Mário da Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Weil, Simone. Espera de Deus. Tradução de Manuel Ferreira Patrício. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002.















