Durante a infância, umas das atividades que meus irmãos e eu mais gostávamos de fazer era desenhar. Porém, um pouco antes de pegarmos confiança no traço próprio, pedíamos a nossa mãe para que desenhasse personagens em folhas de sulfite. Ela é uma daquelas pessoas com dotes artísticos aflorados e com uma boa coordenação motora.

Então, ela desenhava vários personagens, homens, mulheres, super-heróis, com diferentes características, traços e vestimentas. A mim e meus irmãos cabia a prazerosa tarefa de pintar e recortar os desenhos, que serviriam como nossos bonecos de papel, protagonistas, em duas dimensões, dos mais variados enredos que criávamos em nossas brincadeiras.

A lembrança que narrei é um dos possíveis retratos da infância dos anos 90, sem smartphones, tablets, videogames e internet. Nesse contexto, em especial, o da minha infância, o desenho era uma das principais atividades de lazer e de aprendizado. Mas sua importância não se limita àquele período escasso em recursos e dispositivos digitais. O desenho continua sendo uma prática fundamental para o desenvolvimento infantil.

De acordo com a Psicologia Histórico-Cultural, a prática de desenhar ajuda no desenvolvimento da consciência, da percepção, da memória e do pensamento1. Por meio do desenho, a criança manifesta suas vivências, o modo como compreende o mundo e as pessoas a sua volta, registrando sentimentos, ideias e conceitos. Cada figura e cada detalhe refletem vivências, situações familiares e imaginárias, demonstrando a maneira singular como enxergam a realidade.

Para o pesquisador e educador Arno Stern2, em Compreension del arte infantil, “a arte não entra na criança, sai dela”. Para esse autor, não se deve influenciar nem sugerir a criança o que de se expressar espontaneamente, sem interferências externas. Hoje, olhando alguns desenhos da minha filha, as criações realmente parecem sair de um universo intocado, um modo singular de ver o mundo e representá-lo, como se fosse algo inato a cada criança.

Por um lado, as crianças nascem com uma predisposição para rabiscar, como notamos nos primeiros quatro anos de vida delas toda vez que as deixamos próximas de canetas, lápis de cor, pincéis ou outro material capaz de riscar (desenhar). Quem tem criança pequena sabe que parede lisa (sem nenhum desenho) é luxo. No entanto, para que os desenhos evoluam e contribuam para o desenvolvimento das próprias crianças, é necessário propiciar um ambiente que favoreça a prática de desenhar.3

O desenho é uma forma de linguagem por meio da qual a criança processa suas experiências, expressando seus sentimentos e comunicando-se com o mundo ao seu redor. Os desenhos da minha filha, por exemplo, contêm uma variedade de elementos, cenas, objetos e comidas que ela considera importantes, dos mais comuns aos mais inusitados, como os integrantes da família, a casa em que mora, controle de videogame, fatias de pizza, sereias, arco-íris, coelhos, flores, corações etc.

Muitos desses desenhos trazem referências do que ela assiste na TV, observa na escola, parque ou ouve dos irmãos. Outro dia, por exemplo, ela estava dedicada a desenhar uma mesma cena, segundo ela, o Curupira correndo atrás de um cachorro, logo após ter ouvido essa mesma história narrada pelo irmão do meio.

Quem convive com crianças pequenas já deve ter ouvido alguma delas narrar uma cena ou objeto detalhadamente a partir de um desenho com poucos traços, como se apenas elas conseguissem enxergar o que desenharam. De acordo com Vygotski4, no estágio das representações esquemáticas (o primeiro de quatro estágios, segundo Georg Kerschensteiner), a criança desenha de memória o que ela sabe sobre o objeto, o que lhe parece mais essencial, e não aquilo que vê ou imagina sobre o objeto.

Outro dia desses, a menina me pediu para desenhar a roupa da personagem Mirabel do filme Encanto (2021), mas antes ela desenhou o corpo inteiro da personagem (braços, pernas, tronco etc.). Em resumo, me senti vestindo um manequim.

image host Figura 1: Desenho da personagem Mirabel do filme Encanto, Disney, (2021).

Vigostki4 comenta esse tipo de comportamento da criança ao citar Karl Bühler, segundo o qual, entre os seis e sete anos, as crianças fazem desenho de raio x. Por exemplo, ao desenhar uma pessoa vestida, elas traçam igualmente sob as roupas as pernas da figura desenhada. Ou seja, elas desenham o que conhecem sobre o objeto, e não o que enxergam dele. A mesma lógica ocorre em casos em que as crianças desenham seres desproporcionais, pernas que saem diretamente da cabeça e vários outros desenhos curiosos.

A partir dos 11 anos, segundo aponta Vigotski, as crianças naturalmente perdem o interesse pelo desenho. Assim, o que antes era uma criação espontânea só permanecerá se desenvolvendo se for culturalmente mediada e incentivada, em espaços como a escola e a família. Por isso, a importância de cultivar a criação na idade escolar, uma vez que, como afirma Vigotski “todo futuro é alcançado pelo homem com a ajuda da imaginação criadora.”4

Na minha história, o desenho surge primeiramente em casas, pela mediação de um ser humano mais experiente, que dava forma no papel àquilo que eu desejava criar, e, mais tarde, na escola, pela figura de professores que incentivaram a criação artística. Vivências que provavelmente contribuíram com muitas das minhas escolhas acadêmicas e profissionais.

Hoje me encanto pelos desenhos de uma criança de cinco anos, busco significados, procuro entender a forma como ela se expressa e a incentivo a se desenvolver, a explorar, a tentar. Talvez eu seja a mediadora da vez, assim como minha mãe foi no passado.

Notas

1 Hoeller, Ana Karina Corrêa. Pressupostos para o ensino do desenho na educação infantil a partir da pedagogia histórico-crítica. 2023. Dissertação (mestrado). Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, 2023.
2 Stern, A. Comprension Del arte infantil. Buenos Aires: Kapelusz, 1962.
3 Rodrigues, Daniela Soares et. al. A evolução do desenho infantil. Revista Inovação & Sociedade. Iporá-GO, v.6, n.3, 2024.
4 Vigotski, Lev S. (Lev Semionovich). Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico: livro para professores / Lev Semionovich Vigotski; apresentação e comentários Ana Luiza Smolka; tradução Zona Prestes. São Paulo: Ática, 2009.