Se eu fosse…
Se eu tivesse…

(Shakespeare. «A Tempestade», 1623)

If you can dream…
If you can think…

(Rudyard Kipling, «Se», 1895)

É sob o signo deste sonho e desta hipótese que a utopia se desenha e se apresenta em LoSS, a League of Secessionist States, espécie de ONU das micronações.

Em 2016, celebrámos meio milénio sobre a cunhagem de um conceito e de um género: utopia. Thomas Morus cunhou-o com uma ficção assim intitulada, nome de ilha que, como todas, seduzem pela moldura de céu e mar, indicios de perfeição aspirada, de ideal quiçá possível, de uma insinuação de verticalidade imaginária (Jerusalém Celeste, Shambala) ou de uma horizontalidade em linha de fuga (a)temporal para trás (Éden, Atlântida) ou para diante (Quinto Império vieirino, joaquimita Idade do Espírito Santo, Novo Mundo orwelliano). Dela falei já em texto anterior, ao espelho das distopias.

Ora, as utopias correspondem, rigorosamente, à cartografia de uma realidade compensatória, como entre o retrato e o seu negativo, verso e reverso. Espelham, pois, contrastivamente, a representação da comunidade em que se geram. Por isso, estão em metamorfose. Terapêuticas, contribuem, pela efabulação, para afeiçoar a elas uma realidade sempre imperfeita e para conformar a esta o homem inquieto, intranquilo, inconformado.

Às vezes, queremos e/ou cremo-las ao lado, coexistindo connosco. Ilhas ‘empoadas’ ou cidades fantásticas em universo multidimensional. A ilha de S. Brandão ou a de Avalon, a oriental Shambala inacessível ou, embora mais terrena, a africana Wakanda (da Marvel, cinematografada em Pantera Negra, 2018, de Ryan Coogler) e tantas outras.

Actualmente, porém, uma nova ‘utopia’ sem verticalidade nem horizontalidade, sem função interventiva no real, nasce do ‘desencantamento do mundo’ (Max Weber, Marcel Gauchet) e da impotência dos cidadãos: as micronações virtuais.

A motivação é claramente expressa:

“Cansado da loucura da política ou das interferências governamentais em sua vida? Está pagando mais impostos do que deveria? Acha que as coisas seriam melhores se as pessoas fizessem o que você diz? Temos boas notícias: você pode criar sua própria micronação!

E apela-se ao desejo de poder: é o lugar onde mandarás!

Apontam exemplos e provas de vida dessa via:

“Mais de meio século depois, muitas outras nações imaginárias como o Ducado de Grand Fenwick continuam a tentar construir o seu próprio mundo, longe da realidade das Nações Unidas /…/”

E até assinalam momentos históricos de confronto entre esse micromundo e o macro, real:

“Quem não se lembra daquela vez em que o Ducado de Grand Fenwick, uma minúscula nação perdida na imensidão dos Alpes franceses, declarou guerra aos poderosos Estados Unidos da América com um ridículo exército de 20 e poucos homens, armados com arcos e flechas, e saiu vencedor? Os historiadores continuam a ignorar este feito, mas quem viu a comédia 'O Rato Que Ruge', de 1959, ou leu o livro que lhe deu título, nunca esquecerá o dia em que as nações mais pequenas do mundo vergaram as grandes potências e forçaram-nas a seguir o caminho da paz.”

Eis, pois, a nova demanda sem Graal que até prescinde do fragmento de território.

Sim, porque, inicialmente, ainda se procurava o terreno ‘de ninguém’: Liberland, p. ex., foi criado por Vit Jedlicka em 2015 em 6 Km2 entre a Croácia e a Sérvia, ou o Reino do Sudão do Norte, fundado por Jeremiah Heaton para satisfazer o sonho da filha, num território de cerca de 2000 Km2, entre o Egipto e o Sudão. E havia que mimetizar o funcionamento de um país real, desde as instituições à conflitualidade social e reivindicativa. Depois, nem esse trabalho de descoberta de terrenos sem dono…

Tão prêt-à-porter que já há guias de Como Criar o Seu Próprio País para essa fundação, quer da wikihow, em 13 passos, quer em 11 ou mesmo 3 (Como Construir Seu País, Valerie Wyatt) com uma comodidade máxima: sem sair de casa (como o jornal Público evidencia em título), com a ajuda de um tutorial da erepublik.com ou através de uma apps para android disponibilizada no GooglePlay para instalação no telemóvel que nos seguirá para todo o lado. E o processo chegou a ser matéria de documentário (Como Começar Seu Próprio País, de Jody Shapiro ) destacado na 35ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Navegando por alguns dos seus sites, vemos um trabalho imenso de efabulação. Têm simpósios, estruturas institucionais e todas as insígnias habituais (bandeira, hino e até moeda), relações internacionais com códigos e com uma League of Secessionist States (LoSS) de dezenas de membros, a mais importante organização inter-micronações, cujo site é em 4 línguas, das quais uma é o português (as outras são o inglês, o francês e o castelhano), revelando uma história já acidentada desde a sua fundação em 1980 e uma estrutura também complexa, desde a direcção até ao tribunal e à Assembleia Geral. Há uma Liga das Micronações, um Quinto Conselho Mundial, uma Comunidade Lusófona, as Micronações Unidas, a Grande Aliança, a Alta União das Nações, a Comunidade Britânica de Micronações, a Organização Micronacional Europeia da Cultura, a Organização Micronacional da Cultura Norte Americana, a Organização de micronações ativas, etc.. Nesta sua toponímia, reconhecemos a do real e, até, sinais da história (Sacro Império de Reunião, Athenia, p. ex.) e dos mitos (Thord, dentre outros) europeus, sinais dessa ligação sempre actuante. Nos seus gestos, análogos se evocam: Badakhshan, micronação lusófona na Ásia Central, declarou suspensos os vistos de entrada necessários ao turismo. Não falta a este universo uma "Miniature Alliance and Treaty Organization" (MATO), como não falta a atenção laboriosa dos nele investem e se empenham… desviando da vida real a sua energia anímica e construtora, esquecendo o sacrifício de Prometeu, condenado pela dádiva do fogo aos homens.

Este é o admirável mundo novo nascido no ciberespaço e por lá ‘vivendo’, na decepção do projecto político efectivo, da classe e das personalidades políticas e da intervenção cívica eficaz, já que todas as utopias que ensaiaram a sua materialização se revelaram imensas disforias…

Eis, pois, como alguns continuam esse Se de Rudyard Kipling (If, 1895) integrado no sugestivo Rewards and Fairies (1910), poesia alegadamente inspirada por Leander Starr Jameson, que vale a pena evocar em jeito de alerta à navegação para todos, saltando sobre o século XX, sem assimilação das lições da História do ‘homem lobo do homem’:

If

If you can keep your head when all about you
Are losing theirs and blaming it on you;
If you can trust yourself when all men doubt you,
But make allowance for their doubting too;
If you can wait and not be tired by waiting,
Or, being lied about, don't deal in lies,
Or, being hated, don't give way to hating,
And yet don't look too good, nor talk too wise;

If you can dream—and not make dreams your master;
If you can think—and not make thoughts your aim;
If you can meet with triumph and disaster
And treat those two imposters just the same;
If you can bear to hear the truth you've spoken
Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to broken,
And stoop and build 'em up with wornout tools;

If you can make one heap of all your winnings
And risk it on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
And never breathe a word about your loss;
If you can force your heart and nerve and sinew
To serve your turn long after they are gone,
And so hold on when there is nothing in you
Except the Will which says to them: "Hold on";

If you can talk with crowds and keep your virtue,
Or walk with kings—nor lose the common touch;
If neither foes nor loving friends can hurt you;
If all men count with you, but none too much;
If you can fill the unforgiving minute
With sixty seconds' worth of distance run
Yours is the Earth and everything that's in it,
And—which is more—you'll be a Man my son!