Falei anteriormente nas Cenas da Foz (1857), de Camilo. Vou agora a outra novela sua.
É uma história que faz arrepiar os cabelos. Há aqui bacamartes e pistolas, lágrimas e sangue, gemidos e berros, anjos e demónios. É um arsenal, uma sarrabulhada, e um dia de juízo! Isto sim que é romance.
(Camilo Castelo Branco. “A todos os que lerem”. in O Que Fazem Mulheres (1858))
Apresentado como “romance filosófico”, O que fazem mulheres (1858)1 tem os habituais ingredientes da novela passional (paixões contrariadas e clandestinas, casamentos impostos, adultério, intrigas, enganos, emboscadas nocturnas, etc.) que vão compondo o edifício ficcional que vai sendo sucessivamente desconstruído pelo narrador camiliano: fundamenta-se arquitectonicamente na contradição e noutros procedimentos que a reforçam e a desenvolvem, como veremos.
A começar pelo paratexto.
Comecemos pelos textos introdutórios, contrariando o género anunciado na matéria e no registo discursivo: “A todos os que lerem” e “A alguns dos que lerem”.
Os dois primeiros interpelam dois tipos de público a seduzir (mais alargado e mais selectivo), com diferentes estratégias, matérias e registos de escrita e de leitura. Entre o drama inspirado “num subterrâneo, ao bruxulear sinistro duma lâmpada” e a “verdade” da representação, a ‘piscadela de olho’ ao “leitor pio” e ao ciente dos códigos literários, renova-se no seio da narrativa, quando Camilo, colocando possibilidades efabulatórias, chega a considerar algumas “medonha figuração” ou “parvoiçada imaginativa”.
E a fechar com o jogo estatutário entre o paratexto e a novela: a seguir à palavra “Fim” da “Conclusão”, surge o “Suplemento” intitulado “Prefácio”, com diferentes desenlaces para a mesma história.
Quanto aos capítulos, confrontamo-nos com a surpresa de um inaugural “Capítulo Avulso” e, entre os capítulos XIV e XV, de “Cinco páginas que é melhor não lerem”, “mira[ndo] a alvo transcendental” (a saber: a problemática legal da paternidade e filiação).
Quanto ao “Capítulo Avulso”, é, como indica o subtítulo, “Para ser colocado onde o leitor quiser”, de acordo com a falta de funcionalidade da personagem na economia da novela: seguimos Francisco Nunes, caricatura do político ensaiando um “improviso” parlamentar contra o charuto, empunhado por ele e, muito mais adiante, pelo “braço do barão erguido em atitude profética, e lá em cima do cocuruto da mão sebácea”. Só reencontraremos Francisco Nunes no último parágrafo, declarado como o “único personagem morto desta história”…
Outros casos surpreendem na habitual sequencialidade novelesca. Por ex., o capítulo V começa por anunciar um divertissement sobre “umas poucas de luas” a propósito da lua-de-mel do casal, interrompendo o curso da história, mas acabará por retomá-la.
Também a linearidade da história sofre enovelamentos. A meio, no capítulo XIII, uma espécie de ponto da situação da efabulação (suposta conversa entre o autor e alguns amigos sobre o desenlace) anuncia um final feliz que a “Conclusão” infirmará, mas que, após o “Fim”, o “Suplemento” intitulado “Prefácio” (subvertendo as suas funções), concretizará, brincando com o horizonte de expectativas do leitor. A alegada verdade dos factos (justificando diferentes momentos do seu conhecimento pelo narrador) colide com a retórica da arquitectura da obra…
Deixemos os jogos camilianos de construção textual, análogos ficcionais dos modernos Legos, e olhemos para o centro compositivo: o par Ludovina e João José Dias.
Em contraluz, espreita o modelo do par do cânone romântico: jovens, belos, sensíveis, sedutores, apaixonados… Mas, aqui, ao lado da encantadora adolescente Ludovina, João José Dias “devia orçar pelos seus quarenta e cinco anos”, “de estatura menos que meã”, com “uma série descendente de panças, desde a papeira côr de rosa até às buchas das canelas ventrudas”.
O encontro é marcante: “O comendador fez-se verde-garrafa, desenrugou as pálpebras quanto pôde, e pasmou os olhos suínos na atitude imperiosa de Ludovina, que apertava o botão da luva, e enroscava no colo as martas”. O “ciúme sem causa” fá-lo-á “envesga[r] o olho de soslaio por sobre as feras”, “os leões honoríficos do Porto, se assestavam pertinazes os óculos na [sua] peregrina esposa”, e procurar isolá-la socialmente até que… não quero antecipar! O contraste do casal, chocante, será factor de manipulação emocional do leitor por um narrador-autor que com ele se diverte até à “queda” de Ludovina “nos braços asquerosos” do marido, nas palavras de um pretendente frustrado.
Uma novela com dois finais contraditórios, portanto, ambiguizando as fronteiras do ficcional, desse “romance [que] estava acabado” com esse definitivo “Fim”: será o verdadeiro final o primeiro, da “Conclusão”, de acordo com o protocolo habitual, e o segundo (o “Suplemento”-“Prefácio”), apenas um esclarecimento sobre a vida que lhe teria servido de modelo e inspiração, ou ambos, em jeito folhetinesco, têm idêntico estatuto romanesco? Trata-se, claramente, de estratégia autoral irónica de corresponder a todos, manipulando a contradição e a ambiguidade até ao limite, antecipando os modernos processos da literatura inter-activa.
Como na célebre composição de M.C. Escher “Escada acima e escada abaixo” (1960), em que uma escadaria contínua formando um quadrado (telhado de um edifício circundando um pátio interior) parece subir e descer simultaneamente, também em O que fazem mulheres tudo é de uma maneira, podendo ser exactamente o seu oposto, ou ambas as hipóteses ao mesmo tempo.
A interdiscursividade típica da escrita camiliana também entretece esta ficção, promovendo o efeito de continuidade da escrita conduzida pela imaginação autoral que relaciona e reconfigura personagens, situações e histórias, conformando, afinal, um único e mesmo universo ficcional e vincando a identidade autoral. P. ex., se a caricatura do deputado Francisco Nunes como que antecipa o inesquecível Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda d’A Queda dum Anjo (1865), João José Dias evoca uma longa galeria de grotescos brasileiros de “torna-viagem” que atravessam a novelística camiliana, desde o Hermenegildo Fialho Barrosas d’Os Brilhantes do Brasileiro (1869), par igualmente contrastante da bela e juvenil Ângela, até ao de Eusébio Macário (1879).
Relativamente ao narrado, além das já assinaladas contradições entre a reivindicação de veracidade e a sugestão de ficcionalidade, valerá a pena atentar na manipulação de certos pormenores.
Um dos pormenores, nuclear, funciona anamorfoticamente: Marcos Leite. De acordo com o modelo romântico da “descoberta” da história verídica, Marcos Leite é a fonte da informação, garantia do tal “romance todo feito” de que Garrett nos falava. O nome, porém, é falso (“dê-se-lhe esse nome”) e a sua identidade emerge, inesperada, de um nariz Bourbon, que uma poesia confirmará (“A Ludovina”, n’O Nacional, nº 116, de 25/5/1858), reproduzida em A Aurora do Lima (14/6/1858) e reimpressa em Ao Anoitecer da Vida (1858): é o nariz do próprio Camilo! Subscrevendo a obra em jeito de assinatura.
De Cleópatra a Hitchcok, o nariz conduziu a história, rubricou-a, subverteu-a e/ou instabilizou-a... o modelo da novela passional, cuja “loja” Camilo “abri[u]”, inscreve em si uma espécie de capriccio ou divertimento demonstrando o virtuosismo de um autor que domina a sua arte, ciente de que literatura é artifício, jogo, construção, segundo critérios e processos. O apêndice bourboniano revela o travestimento da ficção, a dissimulação irónica da fantasia, insinua o gesto da escrita, origem da novela, rivalizando com um seu famoso antecessor, o de Cyrano de Bergerac, ao conduzir a pena autoral a outra lua, a de Ludovina, tão imaginada e imaginária quanto o permitem as faculdades humanas e os cânones estéticos, com os seus modelos e critérios, com todas as “excelências da mulher”. Na ponta “recurva como o bico dum pássaro”, brilha a ironia que sopra no discurso e o habita!
Também o tabuleiro ficcional se conforma especularmente: mãe e filha protagonizam amores contrariados, casamentos impostos e refúgios num convento, assemelhando-se e dissemelhando-se através deles e da sua vivência deles, uma, com o adultério e outra, conformando-se ao compromisso. Sequência e variação geracional da relação entre géneros e de cada um deles, contracenando e constituindo uma galeria de retratos em movimento.
Enfim, tudo isto revela O que fazem mulheres na confluência de dois programas ficcionais: por um lado, um reivindicado projecto de representação e de cartografia da existência (d’“o campo das possibilidades humanas”, na expressão de Milan Kundera2); por outro, o compositivo, à maneira de Escher, com reflexividades e inversões.
Leia-se, pois, Camilo neste seu bicentenário! Do seu apêndice bourboniano, escorrem o cânone e a sua subversão…
Notas
1 As citações foram retiradas da edição Camilo Castelo Branco. O que fazem mulheres: romance filosófico, Porto, Caixotim, 2005. Por comodidade, não localizo as citações., liberdade para que peço a compreensão do leitor.
2 Cf. Milan Kundera. A Arte do Romance, Lisboa, Dom Quixote, 2017.