Na medida em que prestamos atenção nos objetos, nos afeiçoamos a eles ou não, mas nos familiarizamos, de qualquer forma. Nessa atenção um objeto qualquer se torna uma colônia de qualidades. Chega uma hora em que não somos mais nós que atribuímos às coisas suas qualidades. Essas elas mesmas nos propõem. Os objetos não funcionam também se não forem de alguma forma modos de se comportar. Imagina ter na mão um sorvete, um sapato, um martelo. O que se faria com cada um dali em diante não pode nunca ser a mesma coisa, mas os três de alguma forma caem. A queda do sorvete é engraçada ou trágica (o que dá no mesmo); a queda dos sapatos se chama caminhar e a do martelo se chama fazer.

Mas esses trabalhos, apesar da inocência relativa do assunto, são algo severos na sua falta de “subjetividade” ou apelo sentimental. O colorido é manchado e irregular, aplicado em carga baixa, turvo demais para deixar subir o cheiro adocicado de nostalgia; o acabamento é áspero demais para que eles se banhem na luz preciosa da inocência. A fixação da Zoé nessas partes do mundo, desapercebidas de tão constantes, é uma maneira de ancorar cor, contorno e volume numa realidade mundana, para que a elaboração plástica não seja confortavelmente abstrata nem figurativa. O reconhecimento da forma não oferece um ponto de chegada, a familiaridade quase ao nosso alcance permanece uma pulga atrás da orelha. Parece que na assertividade muda dessas obras elas zombam da nossa vontade de fazer imagem dos dados concretos e visíveis que surgem de fuçar na forma. Esses objetos à toa parecem ter sido escolhidos pela Zoé para formar um vocabulário primário de ícones, desses que vêm de quando primeiro se aprende a dar significado ao som e nome às coisas. Mas aqui o nome não bate com a coisa.

Sorvete curioso esse que é só curvas, linhas e ângulos em cores inapetitosas. Uma redução esquemática dessa não deixa lugar para o sabor, para a zona de seduções hiperbólicas do doce. O formato serve porque tornou-se um emblema impresso na retina, das placas de loja e ilustrações populares, cartunescas ou publicitárias. Mas tudo se agita com sentidos parciais. A imagem do sorvete se estica nos sons sibilantes do S e no leve toque com os incisivos no beiço que faz o som do V. Tudo isso acontece na boca mas efetua um objeto que se faz nos olhos também. A fatura da Zoé de certa forma refaz esse caminho em direção aos menos legíveis aspectos das coisas, que se fazem desculpas para uma pintura ou para elaborar uma infraestrutura de sensações disparatadas que abraçam um contorno pendurado na parede e preenchido com tinta a óleo – “all feelings are mixed feelings,” escreveu Gary Indiana. Há também humor aqui, uma piada que depende do reconhecimento de uma verdade corriqueira: tem graça fazer o que todo mundo pensa mas não fez.

Os sapatos são sempre um par, mas formam uma pequena população, por exemplo, amontoados no hall de entrada de um apartamento onde há uma festa; ou quando sobem pelas paredes como insetos, como nessa exposição. Uma constelação de sapatos vistos de cima, onde a volta de um cadarço forma um espaço que se enche de cor (como as alças dos trabalhos-maleta). Não são mais coisas de calçar, que exigiriam que fossem tridimensionais. Originalmente são coisas com volume e cavidades, mas planificadas ao serem desenhadas pela artista. A operação se complica, no entanto, quando Zoé devolve o objeto à tridimensionalidade, dessa vez achatada ou até atropelada (a fixação nos motivos viários ou de automóvel nos seus trabalhos anteriores vem à mente). Um sapateiro costura peças avulsas e planas para fazer um pé de calçado, um correlato direto de como se fazem esses trabalhos, onde a costura é uma efetuação estrutural.

O martelo aplanado se torna uma bigorna, a perspectiva parece amassada até caber num plano. Lembramos da quantidade de ação e de construção aqui, para formar uma imagem que não se veste, não se come e não se usa. A imagem é tão enviesada que a perspectiva funciona como uma distorção, intensificando a confusão visual que faz o martelo perder seu contorno de ferramenta – algo como aquilo que acontece quando repetimos uma palavra tantas vezes que sobra o som e uma presença amorfa no lugar do sentido. Esse esvaziamento rebate no procedimento contraditório que Zoé emprega: o objeto retratado passa por uma desclassificação, tornando-se uma construção quase anônima, e é em sequência recoberto, ou revestido, com a pintura.

De qualquer forma, a exposição toda funciona por aglutinação. Fora os três mundos de coisas que dão título à exposição, aparecem uma televisão, a cabeça de uma garota espectadora vista de trás, umas maletas, elementos desconversados mas que encadeados formam uma linha rítmica. Percussão dos toques de pincel na tela, dos passos de pés calçados no corredor, das lambidas no sorvete geométrico. O ritmo das pinturas-objeto nas paredes são marteladas.

(Texto de Pedro Köberle, setembro 2025)