Eu preferi dormir. Este que vos escreve. O artista também. Todos e todas que neste espaço encontravam-se, antes mesmo da exposição que segue montada, pelas paredes, chão e demais meandros desta galeria na cidade do Porto, em Portugal. Faço questão de discriminar a cidade e o país pois, sabem, quando dormimos profundamente, ponhamo-nos a sonhar e até mesmo a delirar, a edificar absurdos, criar e habitar mundos outros. Então, quem sabe, como forma de juntos nos aterrarmos no aqui e no agora a que esta exposição nos convida, busquemos selar em pedra, ou, digo, em cera, antes que esta derreta ou esfrie, petrifique-se, seque ou desmantele-se, pensemos… err…. juntos, sem que possamos piscar nossos próprios olhos, não bocejamos, não olhemos para os travesseiros empilhados logo na primeira sala expositiva como forma de… protelar… arrastar… desafiar, desfiar, adentrar, o… sonho, sono… sem que a gente durma, pense, arte, exposição, sono, sonhar com o sono, vida e sonho, vida é sonho, sem que eu durma, ou prefira dormir, sem sonhar ou dormir, eu preferi, assim, vivo, semi-vivo, preferi dormir……………………….

Através de uma produção artística multidisciplinar, Raphael Tepedino (Rio de Janeiro, 1989), apresenta Preferi dormir, sua primeira mostra individual na Kubikgallery Porto, após ter participado de mostras coletivas realizadas pela galeria em cidades como São Paulo, no Brasil. Na presente exposição, o artista exibe uma série inédita de seus relevos de parede realizados a partir do uso e da manipulação da cera, além de uma escultura-instalação, situada na primeira sala do espaço expositivo.

Material sobre o qual vem debruçando sua pesquisa formal nos últimos anos, a cera aparece na produção de Tepedino como um elemento esgarçado – por vezes, destituído – de seus usos e funcionalidades usuais, primárias. Se, a priori, o emprego da cera em objetos utilitários se dá, majoritariamente, em objetos como velas e artefatos afins, podemos já nesta instância identificar uma dimensão extra-ordinária nas possibilidades e capacidades que o material detém, a partir da produção do artista.

Na atual série de trabalhos aqui reunidos, Tepedino apresenta obras resultantes de mais de um ano de experimentos em seu ateliê, na cidade de São Paulo.

Ainda que a cera já aparecesse como um material eleito para pesquisas e tentativas de toda sorte, em seu fazer artístico, aqui estamos diante de obras que, apesar de seus diversos resultados formais e suas variadas visualidades, revelam o ponto atual em que a prática do artista encontra-se. Nestes relevos – que tanto desafiam o plano bidimensional quanto flertam com a tridimensionalidade – nos colocamos diante de cenas ora completamente abstratas, ora prenhas de um desejo figurativo mais ou menos evidente.

Tampouco este é o desejo do artista, em seu processo: através de uma escuta mútua entre si próprio e o material que habilmente manipula, Tepedino busca apenas guiar um processo que, inevitavelmente, resultará em fins insuspeitados. Ora próximos de uma abstração completa, mais ou menos pontuada por rajadas de cores compostas pela própria matéria que resta ao ser aquecida durante o processo; ora radicalmente a nos deflagrar pontos, linhas, traços, desenhos involuntários que nos permitem ver esferas parecidas com o sol, cenas afeitas à paisagens, horizontes e tantas outras possibilidades sem fim.

O título da exposição, Preferi dormir, foi retirado pelo artista de um trecho do livro Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. “Preferi dormir, que é um modo interino de morrerˮ, afirma o autor, em seu celebrado romance de 1881. Se a questão do sono aparece na obra de Machado, ainda no fim do século XIX, momento anterior à explosão de estímulos que logo viria com a modernidade e suas muitas facetas, imagens e novas formas de cognição e apreensão do mundo, na obra de Tepedino o sono aparece como um ponto de investigação e inflexão, desde seus primeiros trabalhos.

Aqui, uma pilha de travesseiros que ergue-se no espaço expositivo, do chão ao teto – de maneira quasi brancusiana – aponta justamente para o papel do sono e dos sonhos em um mundo cujos valores como a aceleração e a eficácia parecem reger até mesmo o fazer artístico. Preferi dormir, parece reiterar o artista, fazendo das palavras de Assis também as suas.

O próprio trabalho com a cera, não é preciso apontar de maneira mais explícita do que uma mera citação, revela o desejo de Tepedino de trabalhar com uma matéria que coloca-se na contramão de um tempo afoito pelo resultado e pelo fim, sem que os meios sejam necessariamente levados em conta como deveriam – ou, ao menos, como foram até aqui.

Seus travesseiros e suas obras em cera travam um diálogo transversal, propositadamente não óbvio e nem literal. Ambos, no entanto, se observados e assimilados para além de suas funcionalidades primeiras, nos relembram de um mundo cujo ritmo menos veloz nos propiciava não apenas uma fruição mais possível e justa de nossas vidas cotidianas como, sem dúvida, assimilava-se mais ao tempo ralentando, meio acordado e meio sonâmbulo, meio vivo e meio a sonhar, típico do fazer artístico.

Tempo este que, para aqueles que ainda teimam em “preferir dormirˮ, acaba por aproximar-se mais de um tempo próprio da arte, da prática artística, seja esta realizada em vigília completa pelo artista acordado ou mesmo, também, concretizada como fruto dos sonhos, dos desejos e de tantas outras manifestações inconscientes que apenas o cérebro desligado, derretido, lambuzado feito a cera quente a derreter e logo a recompor-se, pode tantas coisas

(Texto de Victor Gorgulho)