Será que um dia uma inteligência artificial irá encontrar e juntar almas gêmeas, com base em algoritmos, capital social, interesses e virtudes expressos em publicações e validado por likes? Será que o cinema poderá produzir um filme que retrate esse relacionamento e que seja bom, agradável de se ver e relevante para uma reflexão?
Não que os filmes tenham a obrigação de nos fazer pensar. Nossos bons filmes, aqueles que guardamos no coração, foram feitos para nos atingir no emocional, para nos fazer sentir bem numa tarde chuvosa, ou para nos confortar diante de uma realidade não roteirizada.
O gênero da comédia romântica, ou “Rom-Com”, nos deu grandes filmes que se encaixam na categoria apreciar e não pensar. A fórmula existe: um casal charmoso, um cenário deslumbrante (Nova Iorque no outono, por exemplo), um estilo de vida atraente, um conflito que os impede de ficarem juntos, e um final feliz. Pronto! Um balde de pipoca e todos saem do cinema com um sorriso no rosto.
Foi assim com “Harry e Sally, feitos um para o outro” (When Harry met Sally. 1989), “Sintonia do Amor” (Sleepless in Seatle – 1993), “Mensagem pra você” (You´ve got Mail – 1998), “O Amor não tira férias” (The Holiday – 2006), ou um clássico como “Uma Linda Mulher” (Pretty Woman – 1990), e os mais antigos “Sabrina” (Sabrina – 1954) refilmado em 1995 e “Se meu apartamento falasse” (The Apartment – 1960). Este que considero um dos melhores filmes da história do cinema, mas falarei especificamente dele em um futuro artigo.
“O Match Perfeito” (Materialists – 2025) tem no título traduzido e no seu marketing a proposta de uma comédia romântica moderna, com um enredo bastante simples: uma jovem casamenteira, Lucy (Dakota Johnson), se apaixona por um potencial cliente, Harry (Pedro Pascal), um homem perfeito, bonito, rico, gentil, mas..., e sempre tem um mas, ela não consegue esquecer um antigo relacionamento com John (Chris Evans) um garçom, aspirante a ator. Harry faz de tudo para conquistar Lucy, enquanto ela começa a questionar sua vida e seu trabalho. Será que um algoritmo, ou uma pessoa consegue definir um match perfeito? Será essa união uma escolha meramente racional?
O filme então cai na categoria de entretenimento para reflexão. O que é o amor nos dias de hoje? Ele existe ou é uma invenção? Dizem que o amor como elemento decisivo de união entre duas pessoas é uma invenção do século XIV, uma revolução contra casamentos arranjados ou uniões de famílias baseada em interesses e poder. Bem, não vivemos mais esse período, e nos causa estranheza hoje quando pensamos nos casamentos arranjados comuns ainda em outras culturas.
“O Match Perfeito” expõe se não estamos vivendo uma nova era de casamentos por interesses, voltados para o conforto material e bem-estar dos indivíduos, e definido não pelas famílias, mas por uma inteligência artificial ou, chamemos de um algoritmo. O filme expõe a questão, mas também arrisca uma reposta.
Na primeira cena vemos um casal pré-histórico onde já se manifestava um sentimento de atração, proteção e carinho. Seria amor? Na última cena vemos a manifestação do amor entre eles. Entre essas cenas o que temos é um filme altamente sofisticado onde a discussão do tema está embalada por uma história que envolve esse triângulo amoroso. O tempo todo nos colocamos na pele de Lucy, que está num momento de autodefinição. O conforto material de uma vida tranquila ou o conforto emocional de um parceiro com que pode contar.
Bem, do ponto de vista do roteiro de uma Rom-Com, a vida é um mar de rosas desde que ao lado de sua alma gêmea, Será? Aí é que entra o talento de Celine Song, a diretora e roteirista de “O Match Perfeito”. Este não é um filme comum porque Celine não é uma autora comum.
Em 2023 fomos brindados com o melhor filme daquele ano. O filme de estreia da escritora e diretora sul-coreana, radicada nos Estados Unidos, Celine Song: “Vidas Passadas” (Past Lives – 2023). Eu já escrevi nesta revista sobre esse filme1 de quão sutil e delicada é a obra, ao acompanhar o relacionamento de duas pessoas que se amavam na infância, e ganham a oportunidade de terem um dia juntos, no tempo presente. Eles ficaram adultos, suas vidas tomaram caminhos próprios, distintos, mas um reencontro pode despertar um sentimento latente, adormecido.
É uma história aparentemente sobre encontros, mas, no fundo, fala de despedidas, escolhas e, naturalmente, consequências. É daqueles filmes para apreciar e pensar, onde o roteiro da vida pode ser belo e carregar um conjunto de emoções. E é tão bem escrito! Que roteiro maravilhoso! O filme foi nomeado ao Óscar da Academia em 2024, pelo seu roteiro, e na categoria principal de melhor filme do ano. Para mim, o melhor.
No seu segundo filme, “O Match Perfeito”, Celine Song mostra-se uma diretora que aponta seu estilo próprio. Seu cenário é a Nova York dos dias de hoje, bela, luminosa, tranquila e extremamente aconchegante. É um estudo interessante observar como esta cidade foi retratada pelas lentes de inúmeros realizadores, cada qual imprimindo a sua visão de mundo sobre ela.
Outro ponto de destaque nos filmes de Celine Song é a qualidade do roteiro, nos diálogos e nos silêncios. Tanto em “Vidas Passadas” como em “O Match Perfeito” há sequências onde o não dito é tão importante quanto o diálogo. São gestos, olhares, a ambientação da cena que por vezes contradizem o texto, nos entregando uma segunda camada de desenvolvimento narrativo espetacular. Lembrem-se por exemplo das sequências do carrossel de “Vidas Passadas”, os do casamento em que o casal entra de penetra em “O Match Perfeito”. É o que distingue o cinema de outra arte narrativa como a literatura.
O ritmo de “O Match Perfeito” foge um pouco à tradição das comédias românticas. É mais lento e dá mais espaço para nos envolvermos não somente com a ação, mas com o emocional dos personagens. Os conflitos são, por vezes, internos aos personagens. Parece-me muito próximo à construção teatral. Talvez seja esta a característica dos filmes de Celine Song, aliado à naturalidade do cinema. Talvez até pelo próprio background da realizadora como autora de peças teatrais.
Uma coisa é certa: para ela conseguir o resultado que aparece em seus filmes, Celine é uma grande diretora de cinema. Iniciante, por se tratar do seu segundo longa metragem apenas, mas com um talento único. As escolhas dos seus elencos, a direção de atores, as interpretações são de altíssima qualidade.
A mim me parece que Celine Song é uma realizadora extremamente segura do que quer, dos temas a abordar, da condução das histórias, e nos apresenta em “O Match Perfeito” um filme redondo, uma obra única dentro do gênero, bem distinta das tradicionais comédias românticas americanas. Fosse só por isso, já valeria a pena visitar “O Match Perfeito”. Em tempos em que encontrar um bom filme não é tarefa fácil, tomara que os algoritmos não venham a escolher por nós, e que realizadores como Celina Song nos tragam histórias cada vez mais humanas.
Nota
1 O presente do filme "Vidas Passadas".