Robô Selvagem (The Wild Robot – 2024), na minha opinião, foi um dos melhores filmes do ano, uma experiência cinematográfica única, que comprova que os filmes de animação há muito alcançaram o status de arte.

A animação realizada pelos grandes estúdios tornou-se um produto altamente complexo, de custo elevado, que envolve o trabalho de centenas de profissionais no mundo inteiro, e tem conquistado o reconhecimento do público e da crítica especializada, e uma bilheteria tão grande quanto um filme tradicional, com atores reais.

Entre as 10 maiores bilheterias do cinema de todos os tempos temos duas animações. Em primeiro lugar está Avatar (Avatar – 2009) de James Cameron que não deixa de ser um filme de animação e live-action. Em 7º lugar está uma animação chinesa chamada Nezha 2 de 2024, que faturou USD 2 bilhões, que provavelmente nem você viu, nem eu, mas imaginem só o mercado chinês... Fechando o Top 10, Divertidamente 2 (Inside Out 2 – 2024) com a receita de USD 1,7 bilhão.

Os filmes animados não são mais divertimentos para crianças apenas. Uma grande evolução aconteceu no gênero, não só com o desenvolvimento tecnológico e o surgimento do “cinema digital”, como também houve uma evolução temática. Ambos os fatores foram cruciais para chegarmos ao nível de animações que temos hoje.

A tecnologia permitiu a criadores colocar na tela toda e qualquer expressão da imaginação. As ferramentas digitais abriram um leque de opções impensáveis. Além disso, permitiu a democratização da criação, onde qualquer pessoa com um notebook consegue criar um desenho animado completo. O último vencedor do Óscar de animação em 2025, ao qual Robô Selvagem concorreu, foi o filme Flow feito inteiramente com um software de desenho e animação gratuito chamado Blender.

Robô Selvagem pode não ter sido a animação mais vista, mais inovadora, ou a de maior bilheteria do ano, mas tem alguns elementos que a destacam no marasmo atual do cinema.

A história

Um robô programado para cuidar e ajudar cai numa ilha selvagem antes de chegar a seu destino. Naquele ambiente hostil ele precisa adaptar-se para sobreviver, mas, por obra do acaso, adota um filhote de ganso e seus instintos (sim, instintos) maternais vêm à tona. Ele precisa fazer de tudo para cuidar e proteger sua cria.

É a jornada da humanização da máquina, de como a natureza e a convivência com os seres vivos o tornam mais consciente sobre os valores primordiais da vida. Os humanos do filme são os programadores dos robôs tão autômatos quanto sua tecnologia. Esta é a ameaça ao equilíbrio que a natureza e vida animal partilham na ilha “selvagem”. Roz, o robô perdido acaba por se encontrar naquele ambiente e viver a plenitude da sua “maternidade”, a essência de sua programação inicial – cuidar e servir.

Nada mais humano do que um robô que consegue adaptar-se ao meio, a ponto de reprogramar-se e contestar seu criador. O filme, baseado no livro de mesmo nome do escritor e ilustrador Peter Brown, apesar de ser considerado uma obra infanto juvenil, traz uma carga filosófica e psicológica muito forte. Ele funciona bem para crianças, pelo envolvimento com a história, como drama, humor, suspense, ação, mas funciona muito para adultos se mergulharmos nas camadas mais profundas dessa jornada.

O tratamento gráfico

Robô Selvagem é um espetáculo visual, uma animação que transcende rótulos e mistura diversas técnicas. Não podemos dizer que é um filme 3D, estilo Pixar, mas as construções de personagens, especialmente Roz, em três dimensões é notável. Ao mesmo tempo os cenários são criados com técnica tradicional de pintura, e assemelham-se realmente a uma pintura. É possível perceber as pinceladas e as “imperfeições” propositais.

Os movimentos são fluidos, riquíssimos e difíceis de obter num filme inteiramente criado pelas mãos de animadores. Os blurs ou desfoques de movimento, time-lapses (acelerações de tempo) são meticulosamente aplicados e, transforma-se em linguagem visual dessa obra.

Cada vez mais os softwares de animação tornam-se mais sofisticados e com ferramentas que permitem qualquer tipo de imagem e de efeito. Água, pelos, vento, texturas de metal, madeira, vegetação, apenas para citar alguns dos elementos, sem falar na iluminação. Um show! Acredito que em breve os filmes de animação concorrerão com filmes tradicionais às premiações de fotografia. Alguns, como Robô Selvagem já mereciam tais nominações. Eu poderia extrair uma dúzia de exemplos do filme, mas que tal a cena das borboletas (sem spoiler). É pura poesia visual.

O som

Hoje em dia o som nos filmes tem uma importância fundamental para a imersão do espectador, para a tão almejada suspensão do descrédito (uma tradução não tão boa assim), ou suspension of disbelief, isto é a aceitação de algo como verdade, mesmo sabendo que não é, para viajar na experiência da arte. Tal efeito é alcançado quando o espectador submerge no universo proposto pelo realizador.

O som nos transporta e nos insere no ambiente através da modernas técnicas de gravação e reprodução espacial em três dimensões. O trabalho de som em Robô Selvagem valeu-lhe a indicação para um Óscar da Academia Americana.

Assim como o som, a trilha sonora também foi indicada ao Óscar, composta pelo jovem Kris Bowers. Se o som nos insere no ambiente, a trilha sonora nos conecta emocionalmente com a história. Tem sido assim ao longo de toda a história do cinema, de seus filmes clássicos e das inesquecíveis trilhas.

Em Robô Selvagem, a música é envolvente, sinfônica com o peso de uma grande orquestra. Se o primeiro ato é sobre a hostilidade e o desconhecido, lá estão o peso da percussão e acordes eletrônicos. À medida em que o personagem se transforma, a música ganha contornos de leveza e sensibilidade. A cena da migração é o clímax musical, um espetáculo de violinos e metais. É o motor de uma grande e fundamental sequência da história. É uma trilha sonora para gente grande.

A direção

Qual é o papel do diretor num filme de animação? Um diretor é muito mais do que aquele que grita “Ação!” e “Corta!”. É um criador, responsável pelo produto final, pelo que vemos nas telas, pelas imagens, pelo som, pela música. Numa animação, o diretor acaba por ter um trabalho igual ou maior do que num filme tradicional. Ele precisa visualizar a história, transmitir a sua concepção para a equipe de animadores, precisa dirigir os atores. Sim, quis dizer os atores, que na animação representam com suas vozes e com elas dão vida aos personagens.

Chris Sanders, o realizador de Robô Selvagem também é responsável pelo roteiro do filme, junto com o próprio autor do livro, Peter Brown. Chris é um profissional de larga experiência em animações, e já nos apresentou filmes deliciosos como Lilo & Stich de 2002, e o excepcional Como treinar o seu dragão (How To Train Your Dragon – 2010). Ele é um dos poucos criadores desse gênero que mantém um controle criativo sobre seus filmes e consegue, com isso, imprimir a sua marca pessoal. São histórias épicas, que transportam para a tela a jornada do herói clássica, vencendo adversidades, superando o senso comum até despertar um espírito de lideranças e justiça. Seus heróis são improváveis, aparentemente deslocados do meio, o que torna ainda mais desafiadora a jornada e interessante a história.

Sanders traz referências e homenagens a outras grandes obras, seja na inspiração nos filmes de um mestre como Hayao Miyazaki, ou em clássicos como Bambi, na famosa sequência do incêndio na floresta.

Conclusão

Robô Selvagem é cinema para gente grande, para ser visto e revisto muitas vezes. Sempre encontraremos detalhes que passaram despercebidos, ouviremos com mais atenção a fantástica trilha sonora, ou nos atentaremos para a expressão dos personagens. A atriz Lupita Nyong`o, que dá vida com a sua voz ao robô Roz (ou melhor, à robô Roz), em uma entrevista de divulgação do filme, explicou a dificuldade de interpretar tal personagem, sem expressões faciais, sem boca, de olhos fixos. É um trabalho espetacular de voz e efeitos de iluminação por parte dos animadores. O nível de emoção que recebemos de Roz é quase inacreditável.

Antes do final do filme precisei enxugar as lágrimas algumas vezes. Roz, o robô que se torna selvagem, já entra, sem dúvida, para a galeria dos grandes robôs do cinema, quero dizer dos grandes personagens inanimados, e dos grandes atores por trás deles, que nos tocam e nos emocionam. Ela está ao lado de R2D2 e C3P0.

Filmes como este trazem-me a esperança no cinema. Quando a tecnologia evolui numa velocidade vertiginosa e permite absolutamente tudo, quando a Inteligência Artificial rompe as barreiras do que é produzido pelo homem ou pela máquina, e desintegra o conceito de arte, chegamos à beira de um abismo como seres produtores de expressões da nossa civilização. Nunca podemos nos esquecer da mente humana por trás de tudo. A esperança é que Chris Sanders e muitos outros artistas como ele utilizem o melhor da tecnologia para criar conexão com os seres humanos.

Robô Selvagem é uma lição e uma mensagem forte para nós todos, para pensarmos no que podemos nos tornar, e no que realmente é importante para a nossa vida. Conexões, amizades, união, cooperação, meio ambiente, aceitação de diferenças, diversidade são temas fundamentais para uma vida em harmonia. Robô Selvagem é sobre o indivíduo e o encontro com seu destino, mas é muito mais do que isso. É um filme importante para as crianças que serão adultos do futuro, e principalmente para os adultos do presente.