Jeremias Nguenha (doravante JN) faleceu a 04 de Maio de 2007. É autor de “Vada voxe”, “Kasi ka Maputsu kute tani”, “Vizinha”, “La famba bicha” (música em pauta neste artigo), entre outras faixas musicais. Retrata, nos seus trabalhos musicais, a fome, opressão, precariedade das infra-estruturas, entre outras realidades sociais moçambicanas que, analogamente, se pode dizer que são características do então Moçambique (2000-2007).
Todavia, volvidos mais de 15 anos, estas realidades sociais ainda perduram, marcando, assim, a atemporalidade da sua representação. O nosso escopo neste artigo não serão todos os seus trabalhos, mas, sim, “La famba bicha”, por se tratar de uma das suas músicas mais famosas, na qual se expressa sem requintes nem retoques.
Aspectos teórico-conceptuais
Teoria de base: teoria do estigma de Goffman (1980)
Para a prossecução do nosso artigo, socorremo-nos da Teoria do Estigma de Erving Goffman. Esta teoria, segundo Goffman (1980), procura entender como a sociedade reage a características ou comportamentos que se desviam da norma, resultando na atribuição de um rótulo negativo e na marginalização de indivíduos ou grupos.
Goffman analisa como essas atribuições de estigma moldam as interacções sociais e as experiências individuais, destacando a importância de entender o estigma como um processo social. (Idem) Ora, sem nos querermos tornar em analistas políticos, se a CRM1 estabelece várias obrigações para o Estado, com o objectivo de garantir o bem-estar e desenvolvimento do país e dos seus cidadãos, nomeadamente “(…) a promoção da qualidade de vida compatível com a dignidade humana, a garantia da segurança e da justiça, a defesa do ambiente e a promoção do desenvolvimento nacional e da igualdade social (…)” e tais disposições não se reflectem de facto e somente “de jure”, como o povo se verá e/ou verá os que são o garante destes direitos?
É aqui onde a Teoria do Estigma se faz necessária e fundamental para a nossa abordagem, pois entendemos este estigma como um processo social, uma vez que “La famba bicha”, de JN, mais do que uma faixa musical, é uma denúncia e/ou clamor da sociedade face a comportamentos desviantes da norma, perpetuados por quem devia ser o garante do bem-estar da sociedade moçambicana e, por consequência disso, resulta na atribuição de um rótulo negativo e na sua marginalização.
Para Balane (2020), os meios que a sociedade usa para definir a normalidade moldam-se também em expectativas sobre como os indivíduos devem agir. Diante disso, acrescenta: Goffman (1980) distingue a identidade virtual (que constitui aquilo que a sociedade espera que o indivíduo seja – “de jure”) da realidade real (que constitui a forma como o indivíduo é – de facto). (destaque nosso).
Enquadramento conceptual
Conceitos-chave: representação
A representação, de acordo com Mora (1982), refere-se a diversos tipos de apreensão de objecto intencional, i.e., representações que vão desde a fantasia intelectual ou sensível à reprodução na consciência de percepções anteriores combinadas de vários modos, mostrando, desta forma, uma faceta polissémica. Vale, por isso, lembrar ao leitor que
não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.
(Aristóteles, 2003)
Realismo social
O realismo social é um movimento artístico e literário que surgiu como resposta às condições sociais e políticas da classe trabalhadora, buscando retratar a realidade de forma crítica e denunciar as estruturas de poder. Ele diferencia-se do realismo socialista, que era uma doutrina artística oficial da União Soviética, e do realismo, que apenas retrata a realidade sem necessariamente criticá-la. O realismo social procura revelar as tensões entre uma força opressora e suas vítimas (…).
É devido às tensões que a música em pauta (“La famba bicha”) denuncia (a precariedade, a pobreza, a fome, opressão, entre outras realidades sociais moçambicanas) que achamos que esta abordagem se enquadra no conceito realismo social, pelo que o adoptamos para a melhor compreensão e/ou interpretação desta faixa musical.
Aspectos metodológicos
Conforme retro expusemos, a nossa abordagem centra-se na Teoria do Estigma de Goffman e, metodologicamente, para o efeito, porque a letra da música se encontra indisponível, servir-nos-emos da transcrição e posterior tradução (livre) para o Português, uma vez que se encontra em XiChangana, uma língua autóctone moçambicana que, segundo a classificação de Guthrie (s/d), pertence ao grupo Tshwa-Ronga e é codificada S. 50, grupo linguístico que engloba três línguas mutuamente inteligíveis.
A representação (atemporal) do social em “La famba bicha”, de JN
A metáfora de bicha (fila) em “La famba bicha”, de JN
Em “La famba bicha”, o vocábulo “bicha”, ou simplesmente “fila” é, no nosso entender, usado como metáfora de “organização”, “respeito ao processo” e, por que não, “ordem”.
Não obstante não o dizer claramente, o sujeito poético serve-se dele para transmitir estes conceitos e, quiçá, mais, de tal forma que inicia a expressão dos seus sentimentos com uma interrogativa directa, quando entoa:
Lafamba bicha? Vateka bicha? (…)” (JN, s/d), traduzindo, pergunta se 'a fila está a andar', 'se estão a levar algumas pessoas (…)' e, em resposta, o refrão riposta “Alifambi (…) avateki (…) vateka kose(ni) phambeni vangakona” (JN, s/d), i.e., 'a bicha não anda (…) não levam mais ninguém (…) só se arrastam entre eles lá à frente'.
Dito de outro modo, o refrão confirma que a bicha/fila não anda, as coisas só andam ou estão boas lá à frente em que se encontram, i.e., revela-se, aqui, que o sujeito poético (ou povo?) está ciente do que Goffman (1980), apud Balane (2020) chama de identidade virtual (aquilo que a sociedade espera que o indivíduo seja).
Ora, depreende-se ainda, nas entrelinhas desta estrofe, que a fila é uma espécie de recta graduada, onde a “frente” representa a posição em que os dirigentes se encontram, e “trás”, o povo. Portanto, apesar de estarem (os dirigentes e o povo) na mesma recta, as coisas só andam ou vão bem à frente. Para mostrar a sua preocupação com os “sem privilégio”, o povo neste caso, porque também é do povo, apesar de não o transparecer a prior, o sujeito poético reclama, gritando como que de cor:
Hiku: tekani hile nzaku (…) tekani hile nzaku vaka hina (…)” (JN, s/d), traduzindo, ['dizemos: levem alguns de trás (…) levem alguns de trás (…)'], já que só os de frente (os privilegiados) é que eram beneficiados e os de trás (o povo) nem por isso.
Este grito do sujeito poético revela, neste prisma, que mais do que estar ciente da realidade virtual, está, igualmente, ciente daquilo que Goffman (1980) chama de realidade real (que constitui a forma como o indivíduo é), daí a exigência de tratamento igualitário.
Ora, não se trata de bicha/fila da padaria, não se trata de bicha/fila da mercearia do bairro, trata-se, portanto, da recta graduada de que todos (governantes, seus familiares e nós, o povo) fazemos parte. Trata-se da representação do poder que beneficia os que estão à frente (e os seus) e o povo que é deixado para trás.
Da metáfora do pão à água em “La famba bicha”, de JN
Como que em defesa das nuances retro destacadas, o sujeito poético, na estrofe seguinte, metaforicamente, traz, por um lado, a figura dos governantes (representada por um adulto, alguém de idade superior) e, por outro, a do povo (representada por uma criança), cujo pão lhe é roubado e comido pelo seu superior (adulto).
Propositadamente, o sujeito poético serve-se de uma palavra cujo significado remonta ao Cristianismo (quando Jesus multiplicou o pão para os seus servos) e, como bem sabemos, até aos dias de hoje, esta palavra significa mais do que a mistura de trigo, sal, água e fermento, pelo que assevera:
Hawe, hoje pawu ra n'wana (?), kune we, hoje pawu ra n'wana (?) (…)” (JN, s/d), traduzindo, ['Você, está a comer o pão da criança (?) Senhor, está a comer o pão da criança (?)'], isto para traduzir a opressão, injustiça (por que não desrespeito?).
Na sequência, fora da opressão, de se arrancar o pão do povo, o sujeito poético serve-se de outra metáfora para se referir a um dos recursos de que os governantes se servem para amainar os ânimos do povo, recorrendo-se ao vocábulo “água” que, como sobejamente se sabe, é a fonte da vida. Mas, como igualmente se sabe, mesmo que o seja, ninguém viveria dela exclusivamente.
Pelo que se ouve: Wahiphuzisa mati, juro n'wahiphuzisa mati (…)” (JN, s/d), i.e., 'Estás a mandar-nos beber água, juro que nos estão a mandar beber água (…)', como quem diz: para além de nos tirar(em) o pão, ainda nos manda(m) beber água. Quem somente de água viverá?2
Estamos, portanto, perante uma clara representação do realismo social, uma “resposta às condições sociais e políticas da classe trabalhadora, buscando retratar a realidade de forma crítica e denunciar as estruturas de poder”.
A atemporalidade do realismo social em “La famba bicha”, de JN
O sujeito poético, como que em exploração plena da metáfora, não pára por aqui, continua com a expressão de seus sentimentos, mostrando que os que estão na linha da frente fazem e desfazem, fazem coisas sem nexo, quando diz:
Muhifenyisa nfutsu (?)/, juro muhifenyisa nfutsu (?)/ (…) muhifenyisa mpandla (?)/, juro muhifenyisa mpandla (?) (…)” (JN, s/d), traduzindo: ['Estão a mandar-nos pentear cágado (?)/, jura que nos estão a mandar pentear cágado (?)/ estão a mandar-nos pentear careca (?)/, jura que nos estão a mandar pentear careca (?)'] E, perguntamos nós: será possível pentear algo sem cabelo? Será possível pentear um cágado? Uma careca?
Trata-se da prova de que, nesta estrofe, o sujeito poético procura mostrar que os que estão na linha da frente da bicha/fila fazem e desfazem, fazem coisas sem nexo para com o povo.
Ora, se para quem acompanhava as nossas ilações nos parágrafos anteriores do presente artigo percebia um exagero na interpretação das metáforas construídas pelo sujeito poético naquelas estrofes, que dizer da estrofe que se segue, na qual, sem requintes nem retoques, como quem revela que tal opressão, tais desmandos vão para além do contexto moçambicano, mas, igualmente, acontecem com os moçambicanos na diáspora (?), quando entoa:
Djoni wanihlupha (…) wanikakatlula,/ Djoni wanihlupa, wanixanisa, wanikakatlula (…)” (JN, s/d), traduzindo, ['Na África do Sul, maltratas-me (…) humilhas-me,/ na África do Sul, maltratas-me, escangalhas-me, maltratas-me (…)'], ou seja, sem entrar em detalhes, o sujeito poético revela que a opressão descrita nas estrofes anteriores não se circunscreve ao contexto de Moçambique, mas, inclusive na diáspora, os moçambicanos são/eram afectados.
Vale, por isso, lembrar ao leitor que
“não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade”.
(Aristóteles, 2003)
Na continuidade, sem requintes nem retoques (o que nos abona, pois que clarifica o porquê de termos aludido a opressão, injustiça, desrespeito por parte dos governantes e gestores da coisa pública no início da nossa análise), o sujeito poético bate de frente com a linha de frente da recta graduada, quando entoa, no segundo 30, do minuto 3:
Hahile unga binzi(si) wutomi, kambe binza/ mayelano nimuholo, hahile unga khweli(si) preço,/ khwela mayelano ni phakithi (…) hikusa wanihlupha (…) wani kakatlula (…)” (JN, s/d), traduzindo, ['não dissemos para não nos tornarem a vida pesada, entretanto,/ que seja consoante o salário, não dissemos que o preço (ou custo de vida?) não deve subir/ mas que suba de acordo com o bolso (…) porque isso nos está a castigar (…) porque isso nos está a atormentar (…)']
Estamos perante prova de que o sujeito poético, quando falava em pão, água, referia-se, obviamente, ao custo de vida que está alto, às necessidades básicas a que não se tem acesso e, se existirem, são para uma elite – a linha de frente da recta graduada (bicha/fila).
Na sequência e sendo mais explícito, o sujeito poético redargue:
a xapa lanihlupha (…) lanikakatlula (…) hitirhela kunyika yewena we xapa, hitirhela kubala yewena (…)” (JN, s/d), i.e., ['o (preço do) chapa (transporte semicolectivo e/ou público) está a castigar-nos (…) está a atormentar-nos (…) trabalhamos para dar/pagar o transporte, trabalhamos para favorecer o chapa (…)'].
Trata-se de mais um argumento de que o sujeito poético se serve para demonstrar até que ponto a bicha/fila está a andar só para os que estão na linha da frente e não para todos.
À guisa de conclusão
Portanto, apesar de esta música ter sido lançada na década de 2000, retratando a realidade de forma crítica e denunciando as estruturas de poder, a precariedade, a pobreza, a fome, opressão, entre outras realidades sociais de Moçambique do então, estas nuances são, até aos dias que correm, recorrentes, marcando assim a sua atemporalidade.
Bibliografia
1 Constiruição da República de Moçambique.
2 O que nos remete a um episódio de um dos últimos PR's desta Pérola do Atum que, em resposta à classe de professores que reclamavam pagamento de horas-extra, os “mandou beber água, provando, assim, a atemporalidade desta temática realçada em “La famba bicha”, de JN.
Aristóteles. (2003). Poética, 7ªed., Lisboa. Volume VIII.
Balane, N. (2020). Marandza: um estudo sobre a construção e gestão da identidade das namoradas de homens casados na cidade de Maputo. Trabalho de Conclusão de Curso. Maputo: UEM – FLCS.
Goffman, E. (1980). Estigma: notas sobre manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
Mora, J. (1982). Dicionário de Filosofia, 5.ªed. Lisboa: Dom Quixote.















