Ela tinha uma vida tão desarrumada como se fosse uma pintura abstracta, em que as formas se atropelam, se repelem, e escorrem umas sobre as outras, um desenho ou uma folha cheia de gatafunhos, que não se parecia com nada, nas suas formas irregulares, pontiagudas, sobrepostas, como se o mundo a tivesse cuspido ao acaso numa tela, e pronto, ficas assim, sem moldura nem parede que te acolha, vai-te habituando.
Sonhava com formas geométricas, não viajava, o mais longe que tinha ido fora à Malveira, faltava-lhe mundo, dele tinha apenas o que lhe chegava pelas notícias da televisão e que aquelas desgraças eram longe, muito longe, mais de um dia de viagem e isso dar-lhe-ia, com certeza, vómitos. Agoniava quando andava de carro. Onde suportava melhor a viagem era no lugar do pendura com a janela toda aberta e a cabeça inclinada para fora.
Era melancólica, por vezes sentava-se no sofá da sala com os braços à volta dos joelhos e o queixo enfiado entre as pernas e assim ficava a olhar para o ecran de televisão. Depois cansava-se, entediava-se, começava a ler um jornal ou uma revista, mas depressa se fatigava também. Fingia não estar em casa quando lhe batiam à porta, devia ser a vizinha do lado, era boa pessoa, mas muito aborrecida. Essa, os poucos momentos de descanso que tinha era quando o marido ia ao futebol. Gastava tudo com a bola, orgulhava-se e gabava-se em voz alta, que podia faltar para a família, mas não faltava para o seu Benfica, ela que também não viajava suportava a descrição das suas deslocações para acompanhar o clube.
Nada o demovia nem mesmo quando foi ao Jamor, assistir à final da taça em que tinha ido muito cedo e cedo começara a beber, a comer febras de um porco a rodar num espeto em metade de um bidom cheio de brasas, sentou-se numa cadeira de praia e por lá se deixou adormecer e babar, de queixos caídos a resfolegar até perto das oito da noite quando acordou, em sobressalto, e deu pela falta da carteira e das chaves do carro.
A pintora achava que o mundo era feito de camadas ou fatias e a ela coubera-lhe uma mais fina. Achava que era a soma de tudo o que fora no passado e ela tinha muito pouco para adicionar, muito mais para subtrair.
À medida que sentia a sua maluqueira avançar ficava mais insegura, fortemente pressionada por essa sensação de medo, um pouco deprimida também, especialmente desde que o companheiro se fora embora de casa, mas nunca tinha pensado em atitudes irrevogáveis, preferia ir às compras.
Perdera a vergonha e ganhara desprezo pelas convenções sociais na adolescência. Sentava-se de pernas abertas onde quer que calhasse. No consultório médico, nos transportes públicos, em casa de amigos e familiares e os primos, então miúdos, ficavam muito corados e cheios de risinhos, a espreitar por trás do reposteiro e ela não se importava. Na sala de aula riam-se quando o professor se engasgava, de olhos fixos nas suas pernas escancaradas. Tinha um gosto e um grande atrevimento de viver, gostaria apenas de ter um botão para desligar os medos ou doseá-los ou dar-lhes uma cura.
Não gostava da velhice ou da ideia de velhice. A morte, aceitava-a. Que remédio! Mas a velhice era complicada. Tinha ainda muitas coisas para fazer e sentia as queixas do corpo, a desfazer-se como um carro em segunda mão. Nunca perdeu muito tempo a pensar sobre o poder e o sexo, o poder do sexo, o sacrifício, a virgindade perdida da forma mais banal, nem na maldade. Às vezes saía para passear e deixava-se ir pelo impulso do momento, virava nas ruas ao acaso, ia ter a sítios que não planeara, perdia-se e depois mandava parar um táxi e voltava para casa. Gostava dessa sua faceta inconsciente porque lhe dava liberdade e a liberdade trazia a produtividade e a criatividade.
Não tinha vida social porque detestava perder tempo a arranjar-se e achava que tudo lhe ficava mal, enervava-se e acabava por não sair, gostava sim, de descobrir o mistério das pequenas coisas e da transgressão, pisar o risco, não se deixando prender muito no passado, mantendo um distanciamento, mola impulsionadora para tudo o que veio a seguir na sua vida, onde tudo lhe chegara tarde. Os amores, os remorsos, a doença.
Um carcinoma qualquer diagnosticado por acaso, já em grau IV, como quem tropeça num buraco e só dá conta quando está no fundo. Disse o médico que havia tratamento, que havia esperança. Mas ela não era mulher de se deter na palavra “mal”. Dizia para si que o tempo escapa mais depressa quando se dá importância ao que não vale nada. Talvez, se não pensasse muito, se fechasse os olhos por instantes, tudo desaparecesse. Como nos pesadelos, os piores, em que se acorda daí a umas horas…