Só o que construímos bem nos pode salvar, disse uma das quatro mulheres à volta da mesa na esplanada, com os cotovelos pousados como quem se defende da memória. Falava com uma convicção de quem não se importa de ter razão, desde que a frase soe bem. Tinham todas mais de cinquenta anos.
— A minha filha, em pequena, era terrível — disse a mesma, soprando o fumo do cigarro para o lado da rua. — Questionava tudo. Um dia vínhamos de táxi e ela viu uma zaragata entre dois homens. Mandou parar o carro e gritou-lhes da janela se não tinham vergonha de andar à batatada. Sempre foi assim, justiceira. Não é à toa que se tornou advogada. Mas nem isso a livrou do divórcio. Ainda ficou com os dois miúdos e um golden retriever que coxeia de uma pata.
Outra mulher do grupo, muito bem composta, de camisa branca engomada e unhas feitas com esmero, levantou-se em direcção ao seu Mercedes novo, disse que tinha um cliente para atender. Tens uma vida… isso é perigoso! E as outras continuavam a falar das vezes que ela lavava lençóis por causa dos homens que recebia. “Uns vinham por amor, outros por necessidade”, disse, e as outras acenaram com a cabeça como quem já viu de perto o que custa uma solidão às seis da tarde.
Depois falaram das rotinas: iogurte líquido da manhã, o café com leite e a torrada morna, o exercício físico para que a pele não se rendesse à gravidade, os vídeos da neta no triciclo, a tentar chegar com os pés aos pedais.
E o tirocínio continuou, desta vez sobre o privilégio de se estar vivo, que todos tinham mais a agradecer do que a reclamar, da mãe de uma que morreu com quarenta e cinco anos e a deixou órfã com quatro anos, outra que não aguentava o cheiro a xixi de velho pela casa, do pai com alzeihmer e que precisava de cuidados médicos e um rol de desgraças de que me desliguei rapidamente, tudo me soava igual: histórias remendadas com mais ou menos moralismo. Estamos todos em serviços mínimos, pensei. Falta-nos empatia, falta-nos espanto. Por isso vou escrevendo umas coisas, linhas e rabiscos à procura de qualquer coisa de sublime que me proteja da pequenez que nos afoga.
De repente um grupo de homens no café fez soar as suas vozes, os temas eram os mesmos, sobre o irmão mais velho que esteve no seminário em Fornos de Algodres, nos idos de setenta, o mais novo só aguentou 15 dias de arroz seco e carolada na cabeça, eram outros tempos, doía um dente ou partia-se um braço e o barbeiro dava um jeito e só singrava quem tivesse maior capacidade de se desenrascar, era preciso ser muito corajoso, ter muita capacidade de afronta para reclamar ou dizer que não a um padre ou ao pai, nostálgicos de um tempo que nunca foi bom. E era assim com a perda da juventude estranhamos o corpo, perdemos o estímulo para o trabalho e cresce-nos a falta de paciência e a indiferença para com os outros. A dor, por maior que seja, é sempre passageira, só o orgulho é eterno e a memória que ainda nos vai dando energia.
O tempo andava esquisito, choveu de manhã cedo, cordas de chuva que caíam grossas, com o vento de rajada e as árvores, coitadas, sem terem onde se esconder, depois apareceu o Sol primeiro de forma tímida e, agora, perto do meio-dia, abria-se em pano de fundo, como se o dia tivesse mudado de ideias. E eu voltei a ligar os ouvidos, mas desta vez sem grande entusiasmo, as conversas limitavam-se agora a comentar os acontecimentos nas redes sociais:
Fulana de tal, dona de um ginásio da moda, suicidou-se no fim de semana, era uma mulher seca de carnes, a fazer lembrar as professoras azedas do liceu, ou alguma depressão ou uma doença, o dinheiro não traz felicidade e é bem verdade, isto é tudo muito bonito, mas Deus não sofre de angústia existencial, nem precisa de passadeira ou bicicleta no ginásio, nós é que andamos às voltas com a benesse que Ele nos deu.
O mundo, hoje, é um colectivo em permanente algazarra, afundado na dissidência das redes. Ultimamente, o motor da criatividade tem andado em marcha lenta, um diferendo mental para o qual não consigo arranjar mecânico ou redenção. Às vezes gostava de ser uma personagem do Tarantino, daquelas que sacam uma Glock e limpam o sarampo a gajos beras em slow motion, com golfadas de sangue falso a espalharem-se pelos cenários, outras vezes refugio-me na imaginação e nas ideias tontas, na maior parte das vezes ouço histórias, fragmentos dispersos no meio dos intervalos do trânsito ruidoso.
A hora de almoço aproxima-se, as mulheres começam a levantar-se e a arrastar as cadeiras como se arrastassem o passado, os beijinhos e os cumprimentos, até logo se Deus quiser, estou que nem posso, já estou com larica, na rua passou um grupo de três ciclistas em grande velocidade, alguém teve tempo ainda para rematar: tanta pressa, ou vão tirar o pai da forca ou vão ao encontro de Deus, que bem precisam para não terem um acidente e eu percebi que já tinha matéria suficiente para uma história. Havia algo de extremamente sedoso nas palavras como se o mundo, afinal, fosse isto: o rumor das vidas dos outros, e uma cadeira vazia onde o silêncio, por vezes, se senta.















