Um dia, vi a minha mãe olhar para o céu de noite, e perguntei: o que são as estrelas?

Respondeu-me que o meu avô, ganhara um lugar no céu, tornara-se uma estrela que nos guia; um ponto de luz. Não percebi a resposta, o que queriam dizer com o meu avô e um ponto de luz, mas disse que sim, sorrindo.

Dentro de mim existia um vazio. Deixara de sentir o cheiro dele, a voz dele, até o seu abraço. No cadeirão dele: já não estava ninguém. No seu lugar não havia estrela nenhuma: apenas uma cadeira com os seus vincos, com réstias de cheiro que se iam apagando.

Deixei de gostar daquela cadeira; um objecto tão vazio quanto aquilo que eu sentia.

A minha mãe chorava, andava triste. Dizia que não, mas eu conseguia ver as lágrimas tímidas correrem-lhe o rosto em silêncio. Aproximei-me e segredei-lhe que o avô era, agora, uma estrela que nos guiava. A minha mãe sorriu-me com os seus olhos molhados. Abraçou-me e, disse-me ao ouvido:

-Tens razão, meu filho.

Eu dizia apenas isso porque era o que me tinham dito, continuava sem compreender. Sabia que era algo de bom, então repetia. Contudo, o vazio que tinha por dentro era como um lugar escuro onde não se vê o fundo. Uma escuridão onde vivem os monstros, mas eu não sentia medo; sentia como se em mim faltasse alguma coisa.

Mais tarde a cadeira deu lugar a uma planta e eu, raramente, me lembrava do cadeirão do meu avô. Nessa altura, gostava de olhar para as estrelas. Sentava-me sozinho a observá-las durante muito tempo. Deixava os bonecos, os adultos, os mimos, só para ficar apenas ali sentado no degrau a olhar o céu escuro pintado de pequenas luzes. Sentia que aquelas estrelas apontavam para mim e eu conversava muito com elas.

Quando o meu pai veio ter comigo, sentou-se ao meu lado e deixou-se em silêncio. Ficámos os dois sentados na mesma posição de cabeça virada para o alto estrelado e perguntei:

-Pai, se o avô se tornou numa estrela porque há tantas estrelas no céu? São outros avôs? - a resposta do meu pai demorou.

-Filho, as estrelas que nós vemos estão muito longe e ... (fez uma pausa longa como se procurasse as palavras naquela imensidão) sim, essas estrelas que vês também são o meu avô e o avô da mãe.

Eu olhei para o meu pai, ele chorava como a minha mãe, timidamente, mas no seu olho havia um brilho estrelado, um sorriso.

-Porque choras, meu pai?

-Tenho saudades dos meus avós, também deves ter muitas do avô, não é?

Puxou-me contra ele encostando-me ao seu colo.

-O que são saudades, pai?

A resposta, mais uma vez, demorou.

-São as estrelas ... sorriu.

Eu olhei para as estrelas, confuso, mas não quis perguntar mais nada. Estava a gostar do calor do meu pai e de poder olhar para os nossos avós juntos. Será que eles nos olhavam também, pensei.

-Será que eles nos olham, pai? Será que nos veem?

-Não tenho dúvidas nenhumas, meu filho. Eles prometeram ficar para sempre a olhar por nós. Vês que elas piscam?

-“hum-hum”. – confirmei.

-É assim que sabes que nos veem.

-Eu costumo ficar aqui muito tempo. Não quero que o avô pense que eu o esqueci.

-Eles sabem disso, filho. O avô também está cheio de saudades tuas.

Apercebi-me apenas da presença da minha mãe quando ouvi a voz dela.

-Também sentes as estrelas em ti, mãe? O pai diz que as estrelas são saudades.

A minha mãe riu concordando.

-Sim, também as sinto dentro de mim.

Nesse dia sonhei com o meu avô: ele estava sentado no seu cadeirão e olhava para mim com o seu sorriso de reguila. Sentia que era um sorriso de cumplicidade, como um segredo da nossa amizade.

No dia seguinte, na escola, a professora pediu-nos para desenhar a nossa árvore genealógica: era a matéria daquele dia. Eu, desenhei-me a mim com o meu pai e a minha mãe, sentados a olhar o céu escuro, nele, havia três estrelas.

A professora aproximou-se de mim e perguntou-me o que eram aquelas três estrelas.

-É o meu avô, o avô da minha mãe e o avô do meu pai.

Assim como uma árvore que se eleva aos céus, a minha árvore era o próprio céu.

-Muito criativo, gostei! Mas porque quiseste desenhar assim?

-Os meus pais contaram-me ontem que as estrelas são os nossos avós, que quando partiram, prometeram iluminar a escuridão do céu. Eles têm muitas saudades deles.

-E o que são saudades? - perguntou a professora.

Eu fiquei em silêncio, senti as minhas bochechas aquecerem, sentindo vergonha por não saber o que responder.

-Podes dizer o que pensas.

-São as ... estrelas. – inseguro, soou quase como uma pergunta.

A professora sorriu, e dirigiu-se para a turma:

-Trabalho de casa: trazer um texto sobre o que é a saudade. Não tem limite de palavras, escrevam à vontade. Se quiserem entregar desenhos também é válido, perceberam?

A campainha tocou e um alvoroço de cadeiras e correrias expandiu-se; a sala esvaziou-se rapidamente. Eu fiquei um pouco atrás e pedi desculpa à professora.

Ela baixou-se ao meu nível, segurou-me nos braços com ternura:

-Não há motivo para pedir desculpas. Como tu, eu também aprendo todos os dias com vocês, sou muito grata. Manda um beijinho à tua mãe e vai lá, ela já deve estar à tua espera lá fora.

Era quarta-feira, o dia em que o meu avô costumava vir buscar-me. Ao descer as escadas da escola, essa lembrança surgiu e prendi as lágrimas para que ninguém me visse chorar. A minha mãe esperava-me junto ao portão com um olhar doce.

-Como foi o teu dia? – perguntou-me ao guardar a mochila do meu lado enquanto entrava no carro.

-A professora pediu-nos para escrever o que é a saudade porque eu desenhei estrelas na árvore genealógica.
A minha voz era baixa, entrelaçava os dedos, sentia ter feito alguma coisa de errado. A minha mãe apercebendo-se disso, perguntou-me:

-Vamos comer um gelado?

Os meus olhos brilharam, um sorriso grande desenhava-se no meu rosto e a minha mãe observava-me pelo reflexo.

-Vamos lá! – disse-me enquanto rodava a chave do carro.

Fomos ao café, onde todas as quartas-feiras o meu avô me levava antes de voltarmos para casa, comer um gelado. Chocolate branco era o que eu mais gostava e foi esse que escolhi. Sentámo-nos na mesa onde sempre me sentava com o meu avô, na esplanada, a única mesa lá de fora. Comemos enquanto observávamos as pessoas que passavam.

–Está frio! – disse.

-Nunca é frio demais para um gelado! – respondeu a minha mãe exatamente com as mesmas palavras que o meu avô dizia.

Olhei para a minha mãe, senti as lágrimas molharam-me os olhos, estava feliz e triste ao mesmo tempo. Tudo aquilo que se estava a passar era como se fosse o meu avô no corpo da minha mãe.

-Mãe, sabias que o avô dizia exatamente isso?

-E o que estás a sentir?

-Não sei, acho que estou triste, foi como se tu fosses o avô. Até me arrepiei. É como se ele estivesse mesmo aqui, acreditas?

-Eu sei que vocês vinham sempre aqui. Quis aqui trazer-te para reviver esse momento. Para que não te esqueças que essa memória estará sempre contigo. Essa tristeza, não é tristeza. É saudade. É sinal de que gostavas muito dele e ele gostava muito de ti.

Observei a minha mãe. O sorriso dela vinha de um olho lacrimoso. Também ela tinha saudades do avô. Também ela gostava muito dele.

-Eu adoro o avô, mãe!

Nesse dia, quando voltámos para casa, decidi desenhar o trabalho que a professora tinha mandado:

Eu e o meu avô a comermos um gelado.