Se a primeira parte deste artigo1 buscou iluminar a dimensão esquecida da escravidão africana sob o Islã, agora nos voltamos para outra página obscurecida da história: a escravidão de cristãos europeus por muçulmanos do Norte da África. Robert Davis, em Escravos Cristãos, Senhores Muçulmanos, expõe essa realidade com profundidade e detalhamento, contribuindo para uma visão mais equilibrada da história da escravidão.
Os corsários da Barbária e o cativeiro cristão
Entre os séculos XVI e XIX, milhares de europeus cristãos foram capturados por piratas muçulmanos — os corsários da Barbária — e vendidos como escravos nos mercados de Argel, Túnis, Trípoli e Marrocos. Estima-se que entre 1 e 1,25 milhão de europeus tenham sido escravizados nesse período.
Homens eram usados em trabalhos forçados, como o remo nas galés; mulheres eram vendidas como concubinas ou empregadas domésticas. Muitas tentativas de fuga eram punidas com mutilação ou morte. As condições não eram menos brutais do que nas plantations americanas.
A escravidão como instrumento de guerra e conversão religiosa
No contexto do Mediterrâneo entre os séculos VIII e XVIII, a escravidão de cristãos por senhores muçulmanos não era meramente uma prática econômica — embora o lucro com o comércio humano fosse imenso. Era também um componente estratégico de dominação cultural e religiosa. Para muitos impérios muçulmanos da época, a captura de infiéis — especialmente cristãos europeus — era interpretada como uma extensão da jihad, a guerra santa. A submissão física dos prisioneiros vinha acompanhada da tentativa de subjugar também sua fé, sua identidade e sua dignidade.
Esses cativos, em sua maioria marinheiros, camponeses ou peregrinos sequestrados em incursões nas costas da Europa ou durante combates no mar, eram levados para os grandes centros escravistas do Norte da África, como Argel, Túnis e Trípoli. Ali, eram vendidos em mercados públicos, muitas vezes despidos e humilhados, avaliados por sua força física, beleza ou habilidades — o mesmo destino que africanos escravizados enfrentariam mais tarde nos mercados do Atlântico.
A imposição da conversão ao Islã era prática comum. Embora algumas fontes apontem que nem todos os cativos fossem obrigados formalmente a abandonar sua fé, a conversão era frequentemente a única via de escape do trabalho forçado mais brutal, das masmorras insalubres ou da execução sumária. Alguns convertidos conseguiam posições melhores, como guardas, intérpretes ou mesmo conselheiros — mas, para muitos, a conversão não era um ato de fé, e sim de sobrevivência.
Há registros de que milhares de cristãos foram castrados e tornaram-se eunucos a serviço dos haréns ou dos palácios. A mutilação sexual era vista, nesse contexto, como forma de garantir fidelidade e obediência, além de eliminar qualquer risco de reprodução fora do controle do senhor. Esses eunucos, embora muitas vezes integrados à elite administrativa, eram marcados por uma existência de submissão absoluta e irreversível.
O impacto psicológico e cultural dessa escravidão gerou um dos primeiros movimentos abolicionistas documentados na história europeia: o surgimento das ordens religiosas de resgate. A Ordem de Nossa Senhora das Mercês (os Mercedários), fundada em 1218 por São Pedro Nolasco, e a Ordem da Santíssima Trindade para Redenção dos Cativos (os Trinitários), criada em 1198 por João de Matha, tinham como missão central libertar cristãos escravizados.
Essas ordens percorreram reinos cristãos buscando doações, esmolas e legados testamentários. Com os recursos arrecadados, negociavam diretamente com os senhores muçulmanos para resgatar prisioneiros — às vezes em leilões públicos, outras vezes em trocas diplomáticas. O trabalho era perigoso e exaustivo, pois os membros das ordens muitas vezes se ofereciam como reféns provisórios até que novos fundos pudessem ser enviados. Há relatos de religiosos que passaram anos como cativos por não conseguirem concluir as negociações de resgate.
Essas campanhas de redenção, mais do que simples gestos de caridade, refletem a centralidade da escravidão nas relações entre cristãos e muçulmanos naquele período. O cativeiro de um cristão era percebido não apenas como uma desgraça pessoal, mas como uma afronta coletiva à cristandade. Daí a importância simbólica dos resgates, que assumiam um papel quase sacramental: restaurar um irmão à sua fé, sua liberdade e sua comunidade.
Curiosamente, enquanto o movimento abolicionista moderno, do século XIX, se baseava em argumentos de direitos humanos e racionalidade iluminista, essas ordens religiosas operavam dentro de uma lógica medieval, onde a salvação da alma e a honra da fé eram as maiores urgências. Ainda assim, é possível vê-las como antecessoras espirituais dos movimentos antiescravistas posteriores, por mobilizarem a sociedade civil contra a escravidão, ainda que de forma restrita a seus próprios fiéis.
O silêncio da historiografia contemporânea sobre esse capítulo revela uma desconfortável assimetria: a escravidão como instrumento de dominação religiosa não é reconhecida com o mesmo peso quando os cristãos são as vítimas. O desconforto político, muitas vezes, impede a análise objetiva e simétrica das violências do passado. E, no entanto, compreender essas práticas — inclusive com suas raízes religiosas e ideológicas — é essencial para desfazer os mitos modernos que transformam algumas civilizações em opressoras por essência e outras em vítimas por natureza.
Ao aprofundar esse episódio, percebe-se que o uso da religião como ferramenta de opressão não foi monopólio de nenhuma fé específica. Islã, cristianismo e outras tradições foram, em diferentes contextos históricos, instrumentalizadas para justificar o domínio sobre o outro. A escravidão de cristãos por muçulmanos não diminui, nem relativiza, a escravidão praticada pelos próprios europeus. Mas revela, com clareza, que a lógica do cativeiro atravessou fronteiras religiosas, culturais e geográficas — um testemunho da complexidade do fenômeno escravista na história humana.
Um capítulo ocultado da historiografia moderna
Assim como N'Diaye, Davis denuncia o apagamento desse capítulo da escravidão. O sofrimento dos europeus escravizados raramente é mencionado nos currículos escolares ou debates públicos. Falar sobre cristãos como vítimas parece politicamente inconveniente, o que distorce a compreensão da história.
Essa omissão ajuda a construir uma narrativa simplista, onde europeus foram apenas opressores e muçulmanos, vítimas. Mas a história real foi muito mais ambígua.
A reciprocidade da violência histórica
Tanto N’Diaye quanto Davis mostram que a escravidão não foi monopólio de uma civilização. Todos os povos que dominaram, em algum momento, escravizaram. Cristãos escravizaram africanos, muçulmanos escravizaram cristãos, africanos escravizaram africanos — e essa constatação não é relativismo, mas busca pela verdade.
Refletir sobre isso não é “igualar culpas”, mas entender que a violência, quando institucionalizada, ultrapassa fronteiras religiosas ou étnicas.
Ideologia e distorção histórica: o risco da memória seletiva
O que aproxima Tidiane N’Diaye e Robert Davis não é apenas o tema que abordam — escravidões esquecidas —, mas, sobretudo, a coragem de enfrentar uma historiografia contaminada por filtros ideológicos. Ambos rompem com o conforto das narrativas que moldam o passado conforme interesses contemporâneos. Para eles, a história deve ser um território de busca pela verdade, ainda que essa verdade seja desconfortável, contraditória ou inconveniente.
A seletividade da memória histórica — isto é, lembrar de certos fatos e apagar outros — não é um fenômeno novo. Desde Heródoto, sabe-se que a história é contada por quem detém a pena, e muitas vezes essa pena é guiada por agendas de poder. No entanto, o que N'Diaye e Davis denunciam é o agravamento desse problema na modernidade tardia, onde identidades políticas e narrativas ideológicas passaram a controlar o modo como o passado é interpretado e ensinado.
Ambos os autores questionam a tendência de transformar a história em um tribunal moral no qual alguns grupos históricos são eternamente réus e outros, eternamente vítimas. Essa abordagem, ainda que bem-intencionada, destrói a complexidade da experiência humana e impede uma compreensão profunda dos eventos. Ao transformar certos povos em sujeitos exclusivamente passivos, nega-se sua agência histórica. E, ao transformar outros em agentes unicamente do mal, bloqueia-se qualquer possibilidade de aprendizado, reparação e diálogo.
N’Diaye, por exemplo, denuncia que o silêncio em torno da escravidão árabe-muçulmana na África decorre de um constrangimento ideológico: denunciar muçulmanos como opressores é considerado, por muitos, uma ofensa à sensibilidade moderna, especialmente num mundo onde o Islã é frequentemente associado a populações marginalizadas. No entanto, essa omissão produz uma distorção histórica grave. Ignorar ou minimizar a violência de certos grupos para proteger sua imagem é, em si, uma forma de violência contra a verdade — e contra as vítimas esquecidas.
Da mesma forma, Davis argumenta que a escravização de cristãos por muçulmanos na costa da Barbária foi sistemática, cruel e duradoura — e, no entanto, permanece quase ausente dos livros didáticos. A explicação, para ele, não está na irrelevância histórica do fato, mas no desconforto político que ele provoca. Se os europeus foram, também, vítimas de escravidão em grande escala, isso complica a narrativa predominante do Ocidente como único vilão da história. Ao invés de simplificar, essa constatação exige uma maturidade intelectual que a historiografia ideológica muitas vezes recusa.
Essa forma de manipular a memória histórica não é neutra. Ela molda identidades políticas, alimenta ressentimentos intergrupais e impede o florescimento de uma cultura de reconciliação. Grupos que se sentem injustamente acusados reagem com negação ou cinismo. Grupos que se veem como vítimas perpétuas, por outro lado, podem cair na armadilha da vitimização identitária — uma forma de alienação histórica que transforma o sofrimento do passado em moeda simbólica de poder no presente.
O resultado é o enfraquecimento da responsabilidade compartilhada. A história da escravidão, em sua complexidade brutal, nos convida a olhar para todas as faces do problema: para os que lucraram, os que resistiram, os que colaboraram, os que silenciaram. E esses papéis, ao longo do tempo, foram exercidos por muitos povos e civilizações — cristãos, muçulmanos, africanos, europeus, asiáticos. Reduzir esse processo a um embate entre bons e maus é não apenas intelectualmente desonesto, mas eticamente perigoso.
A proposta de N’Diaye e Davis, portanto, é a de um olhar mais maduro e universalista sobre a história. Um olhar que não busca inocentar ninguém, mas tampouco demonizar civilizações inteiras. Um olhar que entende que os sistemas de dominação são sempre construções humanas — e como tais, partilhadas por muitos.
O legado da escravidão: da reparação à reflexão crítica
Ambos os autores, Tidiane N'Diaye e Robert Davis, reconhecem o impacto brutal e de longo alcance da escravidão moderna — não apenas como uma tragédia humana, mas como uma estrutura que moldou desigualdades, marginalizações e feridas identitárias que perduram até os dias atuais. Suas obras não negam a dor histórica, tampouco relativizam o sofrimento das vítimas; ao contrário, tratam o tema com gravidade. O ponto em comum entre eles é o apelo por um estudo sério, desideologizado e empático da escravidão como fenômeno histórico e humano.
A escravidão não foi apenas uma sequência de abusos individuais, mas uma engrenagem social, cultural e econômica que se perpetuou sob múltiplas formas e agentes. Tentar reduzir essa complexidade a slogans como "culpados eternos versus vítimas perpétuas" pode oferecer conforto moral instantâneo, mas empobrece nossa compreensão do passado — e, mais grave ainda, compromete a busca por justiça no presente.
N'Diaye, por exemplo, denuncia não só o comércio transatlântico, mas também o apagamento do tráfico árabe e do papel de reinos africanos na captura de cativos. Davis, por sua vez, expõe uma Europa que também conheceu a escravidão de seus filhos, levados por corsários muçulmanos e vendidos em mercados do Norte da África e do Império Otomano. Ambos nos lembram que, para que a memória seja justa, ela precisa ser inteira — e isso exige coragem intelectual, especialmente quando as narrativas consolidadas precisam ser revistas.
A ideia de “reparação histórica”, portanto, não pode ser tratada com superficialidade ou como moeda ideológica. Ela precisa partir de um entendimento profundo e plural do passado. É legítimo reivindicar justiça, mas é desonesto ignorar partes da história que não se encaixam na lógica binária de opressores e oprimidos.
N'Diaye, em sua crítica ao silêncio cúmplice de muitos intelectuais africanos sobre o papel de elites locais na escravidão, não busca revitimizar os descendentes dos escravizados, mas abrir espaço para uma memória mais honesta — uma que nos permita crescer, e não apenas acusar. Davis, ao mostrar que cristãos foram reduzidos a mercadoria em nome do Islã, desafia uma historiografia que frequentemente se cala diante de abusos que não se encaixam na narrativa eurocêntrica de culpa exclusiva do Ocidente.
Ambos apontam que o verdadeiro tributo às vítimas da escravidão não é o uso político de sua dor, mas o esforço por reconstruir o passado com empatia e rigor. Isso implica incluir todas as vozes, mesmo aquelas que desafiam as certezas ideológicas.
O caminho da justiça histórica passa, necessariamente, pela integridade da memória. E isso significa ser capaz de olhar para a complexidade do passado sem medo, reconhecendo que todos os grupos humanos — em diferentes momentos da história — foram capazes de exercer tanto a opressão quanto a resistência. A reflexão crítica sobre o legado da escravidão, assim, nos convida não apenas a reavaliar o passado, mas a repensar a forma como lidamos com conceitos como identidade, responsabilidade e justiça no presente.
Conclusão – a escravidão como espelho da condição humana
A escravidão, em suas inúmeras formas e contextos, foi um fenômeno global e multifacetado. Não pertence a um único povo, a uma única religião ou a uma única época. Ela revela, em sua essência mais cruel, uma constante da história humana: a capacidade de transformar o outro em coisa, de reduzir a dignidade à utilidade, e de justificar isso com doutrinas, crenças ou interesses econômicos. É por isso que os estudos de Tidiane N’Diaye e Robert Davis têm um valor tão profundo. Eles nos tiram do conforto das narrativas unilaterais e nos colocam diante da complexidade histórica sem concessões.
Ao resgatar capítulos silenciados — como o tráfico transaariano promovido por muçulmanos africanos e árabes, ou a escravidão de cristãos nas costas do Mediterrâneo muçulmano —, esses autores não negam ou relativizam a escravidão colonial europeia. Pelo contrário: ampliam o horizonte, enriquecem o debate e nos forçam a encarar a história como um campo de relações múltiplas de poder, e não como um roteiro de vilões e vítimas fixos. Esse olhar não é negacionista — é maduro. E só pode florescer onde há disposição para a verdade, ainda que ela nos confronte.
O que Davis e N’Diaye propõem, em última análise, é um tipo de libertação: não dos grilhões físicos da escravidão, mas das correntes ideológicas que ainda hoje aprisionam nossa leitura do passado. Eles nos alertam que, ao contar a história com filtros ideológicos — apagando alguns crimes enquanto enfatizamos outros —, não estamos promovendo justiça. Estamos, no fundo, substituindo uma forma de dominação por outra: a da narrativa política sobre a verdade histórica.
Estudar a escravidão em suas múltiplas expressões nos obriga a reconhecer que a barbárie humana não é exclusividade de nenhuma civilização. Ao mesmo tempo, nos convida a identificar os mecanismos recorrentes da opressão: a desumanização do outro, o uso de ideologias (sejam religiosas, raciais ou morais) para justificar a exploração, e o silêncio conveniente diante do sofrimento alheio. São padrões que se repetem — e que só podem ser interrompidos por meio do conhecimento, da memória honesta e da reflexão crítica.
Esse entendimento mais amplo e menos moralizante da história lança luz também sobre conceitos contemporâneos controversos, como a ideia de "dívida histórica". Em seu sentido mais puro, essa teoria propõe reconhecer que certos grupos foram lesados ao longo do tempo e que isso gerou desigualdades persistentes. No entanto, quando aplicada de forma simplista, a noção de dívida histórica pode degenerar numa lógica binária de culpados e inocentes transgeracionais, que reproduz o erro que se queria combater: o julgamento coletivo e a suspensão do indivíduo em nome de uma identidade herdada.
O conhecimento exposto por autores como N’Diaye e Davis nos convida, portanto, a repensar essas ideias à luz da complexidade real da história. Será possível construir justiça com base em uma memória seletiva? Podemos falar em reconciliação enquanto negamos certas vítimas e santificamos certos algozes? Não estaria o verdadeiro caminho para a reparação — seja simbólica ou material — na construção de uma memória ampla, que reconheça todas as formas de escravidão, todos os agentes envolvidos e todas as vozes silenciadas?
Essas perguntas permanecem em aberto. E talvez devam permanecer. Porque o objetivo da história não é oferecer respostas fáceis, mas incomodar, iluminar, desconstruir mitos e nos forçar a ver o outro — e a nós mesmos — com mais profundidade. É só nesse terreno da complexidade que a verdadeira justiça pode começar a ser pensada.